30/04/06

Miccoli para Miccoli

Imagem do dia: Fabrizio Miccoli a desmarcar-se para receber um passe feito por ele próprio, e a chegar atrasado, saltando por cima do guarda-redes do Setúbal.
Miccoli, peço-te uma coisa: para o teu próprio bem, não fiques no Benfica. Há histórias, sussurros, boatos que falam de um cemitério índio jazendo por baixo da estátua do Eusébio, de uma maldição que invariavelmente transforma bons jogadores em jogadores medíocres, e jogadores médios em caceteiros ao serviço da equipa. Quem te vê conduzindo a bola, coladinha aos pés como se tivesse grude, cabeça bem levantada, e quem percebe o alcance de tal feito, tão simples na aparência, não te pode pedir tal sacrifício. Mereces melhor, e em Itália de certeza que encontrarás outro palco para brilhar. A sério. Enquanto jogares com três troncos nas costas e dois "artistas" nas alas, bem podes continuar a passar a bola para ti próprio, que ninguém te vai valer. Vai. Vai e voa, esquece a adoração e o tratamento dos adeptos. Não sejas um puto à procura de reconhecimento fácil, para que no futuro não sejas um jogador olhando para trás, pensando na carreira que te passou ao lado ou ficou esquecida num qualquer clube da periferia europeia. Ninguém te percebe, aqui. Ninguém te merece, aqui. Mas não temas; o esforço mínimo necessário para te manter por cá desconfio que não esteja ao alcance dos dirigentes que tratam da tua vida. Se, ainda assim, te perseguirem, recusa. E se duvidares, pergunta ao Deco. Ele, melhor do que ninguém, poderá falar da maldição da Luz. Escuta-o.

Art Brut

Para abrir as hostilidades na frente sonora, os Art Brut, que na semana passada deram um concerto em Leiria. Pós-punk pensando-se a ele próprio, diversão com sentido, uma ironia nas letras que evoca, por exemplo, uns Lemmon Jelly, mas sem a harmonia pop destes. Ali ao lado, na barra dos links. Será que ouvi falar em Franz Ferdinand?

29/04/06

O Atlântico e a direita

De tanto andar a blogar por aí, ainda me arrisco a acordar um dia transformado num insecto, ou então num convicto liberal de direita, a abundante praga que fundou esta coisa virtual e que dela se sustenta.
Como o risco é elevado, todos os dias mergulho num comboio suburbano para não perder de vista as minhas origens, e lembrar que nem todos os privilegiados têm motorista e iacht.
(Abro um parêntesis aqui para agradecer publicamente a Rui Tavares o facto de me ter obrigado a ler todas as semanas as crónicas de Helena Matos no Público. Antes, bastava passar os olhos por duas ou três frases para ficar com uma ideia geral daqueles doces devaneios de mulher às direitas. Agora, dado o ameno convívio com os textos de Rui Tavares, detenho-me mais demoradamente naquilo que a senhora tem a dizer, e que prazer! E que coincidências entre as duas colunas. Hoje, por exemplo: O Rui fala de privilégios, a Helena de carenciados. Um tratado, o evidente contraste. Os pobres e mal-agradecidos que Helena Matos, de forma tocante, cutuca na sua crónica, têm o seu espelho logo ao lado, onde passam a ser privilegiados. As palavras de Rui Tavares, premonitórias, confirmam os palpites de Helena Matos. Desta é que acertaste, José Manuel Fernandes.)
Mas a verdade é que acabei por comprar a revista Atlântico, à custa da publicidade que se espalhou pela blogosfera fora. Tenho uma certa vontade de me debruçar sobre alguns artigos da revista, e sobre o tom geral de uma publicação que mudou há pouco de director e que agora acolhe nas suas páginas meia-blogosfera reaça. Neste número, as excepções são Medeiros Ferreira e Bruno Cardoso Reis (excelente texto). Mas o tempo não abunda. Por isso, limito-me ao fait-divers e ao bitaite de circunstância.
Com alguma curiosidade, avancei logo de chofre para as páginas dedicadas à polémica da providência cautelar da Margarida Rebelo Pinto. Do lado esquerdo, Carla Quevedo faz uma comparação absurda entre o facto de Margarida se copiar de livro para livro e o facto de ter uma vida privada. Não compreendi. A sério. Será necessário explicar quais são os deveres do crítico, e de que modo João Pedro George os cumpre? Adiante, porque o texto ao lado tem muito mais sumo a espremer. Paulo Tunhas, que me dizem ser um professor universitário de reconhecido mérito intelectual - seja lá o que isso for - fala dos dois livros que levou para férias: "Sei Lá" e "Ensaio sobre a Cegueira". Desculpa a Margarida com o Saramago. É assim mesmo. Se não deixa de colocar a prosa da escritora light ao nível zero da literatura, por outro lado aproveita para achincalhar o escritor que fica sempre bem achincalhar, seja por ter recebido o prémio Nobel, seja por pertencer, simplesmente, ao PCP. Isto, apenas. E Tunhas, armado em George da direita, descobre a pólvora. Saramago copia-se! Saramago usa a mesma técnica de Margarida Rebelo Pinto! Fui ver, dado o favor que ele me fez ao deixar pespegadas no artigo as páginas onde tal cópia acontece. E logo num livro que até me parecera dos mais bem conseguidos de Saramago, um autor que, de resto, não me diz nada há muito tempo. Tiro ao lado, falhanço irremediável. A verdade é que existem mesmo dois trechos que se repetem, mas por uma razão de estilo. Bastava ler com atenção aquelas 5-10 páginas para se perceber o alcance do efeito estilístico. "Ensaio Sobre a Cegueira", páginas 284 e 295-296. Confere. Será abuso da minha parte acusá-lo de desonestidade intelectual? Ou de coisa pior? Nem a cuidada súmula da obra de Fernando Gil que encerra a revista salva Tunhas do tropeção. Há uma razão literária, sim. Indiscutível.
Fins-de-semana em casa sem muito para fazer dá nisto. Ócio sem ofício, e peço desculpa pelo trocadilho sem sentido.

Bénard da Costa

A morte é o estado que mais se aproxima da iluminação absoluta. Que o diga Groucho, lá da sua tribuna privilegiada observando os que ainda não morreram com a autoridade que tal excelsa altura lhe confere. Pois é, há quem ainda não tenha percebido que isto dos cargos públicos não implica que a maçã acabe por cair de podre por ninguém se ter atrevido a colhê-la; do mesmo modo, quem decide o momento da colheita da maçã? A vox populi, o empregador ou a própria maçã? Caro Groucho, você sabe bem do que fala. A sabedoria distingue-se sempre do conhecimento pelo modo sereno com que é aceite, e os velhos que tem conhecido por aí certamente terão algo a dizer neste sentido. João Bénard da Costa eterniza-se no poleiro? Que seja! O seu imbatível argumento convenceu-me. Não percebo a comichão que alguns sentem ao perceber a vontade que o homem tem de continuar o seu trabalho. Desconfiaria da oportunidade de tal micose se acaso usufruisse do ponto de vista do morto, isto é, do seu ponto de vista, Groucho. Bénard da Costa, a quem devemos o crescimento de um projecto como poucos nesta terra de meias-tintas, oportunidades perdidas e subsídios gastos ao desbarato, merecia mais do que alguns argumentos mal esgalhados e acusações facilmente rebatíveis. Programação conservadora? As folhas da Cinemateca falam por si. Excessivo centralismo na gestão do cargo? Se a tutela se opõe à metodologia, que lhe dê directivas em sentido contrário. Será o único ponto a favor de quem defende a cessação do contrato de Bénard da Costa. Mas é um problema de resolução simples. Quem está num cargo público expõe-se à crítica, e a unanimidade é raramente possível. Mas insistir na questão da idade é pura má-fé. A competência nada tem a ver com idade. E ninguém melhor que um morto para explicar o que isso é.

28/04/06

Bananas

Confesso que esperava um texto mais certeiro de Vasco Pulido Valente depois do discurso de Cavaco no parlamento. Que VPV não se surpreenda com nada, já sabíamos, mas por favor, exigimos algum entusiasmo nesse tédio militante. A análise das motivações do presidente e a admissão implícita do passageiro triunfo de alguém que, manifestamente, não pertence ao restrito conjunto de simpatias do bilioso comentador parecem-me, sinceramente, redundantes. Não acrescentam nada ao que já foi escrito. Mas o tema já passou à História, de qualquer modo. Dois dias depois, concretizando o que estava implícito no discurso de Cavaco, o governo atira para cima da mesa o que seria inevitável: a reforma da Segurança Social. Note-se que apenas se tornou inevitável a partir do momento em que os comentadores liberais - e são muitos - trouxeram o tema para as colunas dos jornais. A democracia mediática tem esta maravilhosa, perfeita, forma de funcionamento: as prioridades são definidas por uma elite não eleita de opinion makers e grupos de pressão que substitui na função os deputados que passam os dias a fingir que trabalham, quando não aproveitam para rumar em direcção a paragens mais amenas, longe da chatice do trabalho político parlamentar. Mas isto já sou eu com a mania das conspirações. Ninguém se atreverá a falar contra a revolução que se prepara na área das prestações sociais. O sistema acomoda os seus críticos, acolhe-os de braços abertos. Quem protesta no parlamento está, à partida, condenado ao fracasso. É assim a democracia.

A pergunta que se impõe

Ao discursar no parlamento, estaria Cavaco a par dos planos do governo para a área da Segurança Social?

Amizades imperfeitas (fora de série)*

Sandro emociona-se com a perfeição de Marlon Brando n'OPadrinho. Ruca nunca gostou particularmente do estilo de Marlon Brandão, apesar da sua eficácia na grande área.

*Para se conhecer a série original, visite-se o blogue Agridoce.

27/04/06

Azar

A unanimidade lusitana em torno do Barcelona de Ronaldinho começa a enjoar. Compreendo a súbita adesão dos três milhões de portugueses que não são do Benfica, ainda que esta se tenha limitado a um arco temporal de duas semanas; no entanto escapa-me a razão da persistência do fenómeno. Olhemos para o jogo de ontem, por exemplo. Uma ressalva, antes de mais: o modo de jogar italiano, espreitando o erro dos adversários, expectante e cínico, está longe de me tocar o coração. Ainda assim, prefiro a eficácia italiana ao jogo feio dos alemães, por exemplo. Compare-se os jogadores mais importantes de um e de outro país para que se perceba do que estou a falar: a Alemanha teve Beckenbauer, Rummenigge, Klinsman, Mathaus e Sammer, e agora parece que tem um dos mais sobrevalorizados jogadores europeus, Michael Ballack; a Itália conseguiu mostrar ao mundo jogadores como Paolo Rossi, Baggio, Mancini, del Piero e os dois melhores defesas dos últimos 20 anos - Baresi e Maldini. O rigor do cattennacio conseguiu sempre guardar um espaço para a criatividade dos génios. Lembre-se apenas que até o melhor jogador de sempre (aquele cujo nome preferimos omitir) passou por Itália.
Mas, adiante. Tendo presente esta desconfiança em relação ao futebol transalpino, quero falar do que se passou ontem, e de como foi injusta a avaliação que a generalidade dos jornalistas fez do jogo. O Milão, surpresa, atacou mais, teve mais posse de bola, circulou bem o esférico, conseguiu, a determinada altura, dar a impressão de que iria dar a volta à eliminatória, e até marcou um golo por Schevchenko - jogador subvalorizado na medida inversamente proporcional à sobrevalorização de Ballack. Costacurta, sobra (como Maldini) da equipa perfeita de Arrigo Sachi, conseguiu secar Eto'o; Ronaldinho, se descontarmos um ou outro momento de assombração na segunda parte (aquele controlo de bola de costas para a baliza e o passe a gazuar a defesa milanesa são apenas um pormenor) pouco se viu (vamos fingir que assim foi). Apenas Iniesta - que ainda não descobriu que pertence a uma linhagem de foras-de-série que passa, inevitavelmente, por Guardiola - e Deco conseguiram sobressair. Como já se tinha visto na eliminatória contra o Benfica, o Barcelona é uma equipa que joga à italiana, funda a sua táctica no pressuposto causal de que o opositor acabará eventualmente por perder a bola. As jogadas mais perigosas surgiram depois de erros do meio-campo do Milão. Aparenta jogar ao ataque, coloca muitos jogadores perto da área adversária, mas defende à maneira de um Liverpool ou de um Chelsea. Porque tem Deco, o médio criativo que mais defende no futebol mundial, e tem avançados que estão sempre disponíveis para o trabalho sujo. Ontem, quando Cafú entrou, Rijkaard não teve vergonha de encostar Eto'o ao lado esquerdo, marcando em cima o brasileiro trintão. Assim se consegue ganhar jogos, principalmente se na frente se tem alguém como Ronaldinho.
Expliquem-me lá, o golo não foi limpo? E será o Barcelona a melhor equipa da Europa, ou é apenas um excelente golpe de marketing? Depois do falhanço da época passada, há quem esfregue as mãos de contente com a presença da equipa catalã na final. O Arsenal terá sido um percalço, um acidente nas contas de quem manda. Ainda assim, infinitamente melhor que um Monaco, um Porto, ou até, digamos, um Benfica. A alegria da claque barcelonista portuguesa não é, porém, ponto assente. Aquele meio-campo, que apoia o melhor ponta-de-lança do futebol actual (Henry), não é propriamente a intermédia sarrafeira do Benfica, por isso não sei se será desta que Ronaldinho conquista o seu título. Que os deuses estejam do seu lado. E, já agora, também o árbitro.

(A imagem é do melhor jogador do encontro, Costacurta.)

Onan

O deus esquecido do blogger.

26/04/06

Respeito

Ninguém contesta? Ninguém ousa defender o admirado VPV? Alguém se atreve a discordar da límpida (e cirúrgica) prosa de Maria Velho da Costa? Ninguém ousa polemizar? Eu, por mim, nada tenho a acrescentar. Tudo certo.

O discurso de Cavaco

A hermenêutica do discurso político – quase sempre dúplice ou múltiplo e todas as vezes furtivo – pode tornar-se um espinho difícil de retirar da pele; e aplico a palavra no seu sentido mais literal: é que dói perceber determinadas coisas. Por exemplo, o discurso do 25 de Abril do nosso excelentíssimo presidente. Atente-se primeiro nas reacções, percorrendo de seguida o caminho contrário até à retórica debitada na Assembleia. Na esquerda, o BE desconfia, o PCP desconfia e recorda algo de que, com toda a certeza, Cavaco Silva não gostaria de lembrar, os Verdes papagueiam a voz do dono, o PS aplaude. Como disse, o PS aplaude?! Claro, "um discurso fundamental, apropriado à data comemorada, o discurso de união que se espera da figura mais importante da nação. Cavaco Silva conseguiu, com este discurso, defraudar completamente as expectativas, tanto da esquerda como da direita. Sócrates gagueja e vacila, afirmando positivamente o pendor social das medidas até agora avançadas pelo governo, desviando a atenção da tendência neo-liberal que até agora tem sido marca da legislatura. Não poderia reagir de outro modo; Cavaco foi eleito com o apoio do pleno da direita e subiu ao poder com responsabilidades acrescidas: contentar quem o elegeu, equilibrando a eventual deriva esquerdista do governo, e ao mesmo tempo concretizar o ambicioso programa intervencionista que muitos apoiantes esperavam dele. Quando ouvimos Marques Mendes concordar com o discurso de Cavaco, quase sentimos a garganta engolir em seco, o sapo atravessado de quem, um dia antes, criticara o governo por estar, de acordo com as últimas notícias da OCDE, a não cumprir o prometido em relação ao esvaziamento do défice e ao crescimento da economia. O que o líder do PSD não pode deixar de fazer é defender o emagrecimento do Estado como forma de combater o défice excessivo, e não porque lhe esteja nos genes, este liberalismo anti-natura; quem pensa a direita quer que assim seja, e julgo não estar errado ao achar que o querem contra o desejo da maior parte dos portugueses, votantes do PSD incluídos. Combater privilégios adquiridos pode ser uma faca de dois gumes; se a promessa se mantiver em abstracto, é positivo, mas quando o português começa a ver o Estado mexer nos direitos adquiridos, aqui d’el rei! Prudência nesta matéria é portanto sempre obrigatória. Marques Mendes, que é esperto, sabe disto.
Voltando atrás, Marques Mendes engole em seco – sem que ninguém repare, note-se -, Sócrates retrocede e mente, afirmando a sua costela esquerdista para além de qualquer dúvida, Manuel Alegre aplaude e engole também um sapo, e Ribeiro e Castro finge que o discurso tem alguma coisa a ver com a democracia-cristã que, supostamente, é a ideologia base do partido que ele julga liderar, e também elogia. Belo. Soares mostra a carranca, e nem os patos do costume conseguem grasnar suficientemente alto para se fazerem ouvir na abertura dos telejornais. E na fonte, o que podemos sentir, o que significam realmente as palavras de Cavaco? Optemos pela hipótese menos plausível: Cavaco é sincero. Cavaco não mente. Cavaco tem mesmo o seu coração à esquerda, e acredita na retórica que lhe escrevem. Contra o seu passado como primeiro-ministro ou provando o seu passado como primeiro-ministro – a adversativa aqui tem razão de ser; os seus apoiantes dizem que Cavaco sempre foi de esquerda. Os detractores discordam. – Cavaco é o travão que pode pôr cobro a qualquer tendência liberal do governo PS. Vicente Jorge Silva, no DN, surpreende-se e afirma mesmo que este é o discurso mais à esquerda, mais certeiro, dos últimos quinze anos. E isso inclui Sampaio e Soares. Cavaco rejubilaria, se acaso lesse jornais.
As outras hipóteses, mais prováveis, são de excluir nesta questão? Cavaco mentiu, não sente aquilo que disse. E por que o faria? Que sentido faria a mentira num presidente que acabou de ser eleito e tem uma ou duas presidências pela frente para provar algum ponto que queira provar? Penso em algo diferente, devaneio um pouco e imagino Aníbal sentado no conforto do seu Palácio de Belém, rodeado de Maria e dos seus adoráveis netos, sorrindo naquele modo muito especial que ele tem de sorrir, provinciano e humilde, de homem que conseguiu subir a pulso na vida. Imagino-o a pensar nos seus pais, lá em Boliqueime, olhando com orgulho para o televisor, ouvindo o filho pródigo discursar, escutando o elogio quase unânime dos seus antigos adversários. Imagino-o a sentir o peito inchar de vaidade ao pensar nos pais achando que, apesar de ter subido alto, não se esqueceu do berço de madeira onde nasceu. Há muito de verdade neste súbito devaneio, mas também há alguma mentira. Mas quem saberá distinguir ao certo qual é qual, na ficção como na política?

25/04/06

25 de Abril

Quando alguém me dizia, há uns dias atrás, que começa a deixar de fazer sentido comemorar o 25 de Abril de 1974, e que cada vez mais a memória se vai tornando um privilégio de alguns e o benefício de poucos - os anos passam, e a vida foi-se tornando cada vez mais rápida e inalcançável -, entrei na dança do desconsolo e da amargura. Eu, que não sou velho, e por isso não posso ainda sentir a vantagem de interpor alguma margem de distância entre o agora e o passado - modo rebuscado de descrever essa tão lusa coisinha, o saudosismo - entrei na dança. E a sessão de lamentos e arrependimentos durou alguns minutos, até se ter naturalmente esgotado o naipe de reclamações a debitar. O que é o 25 de Abril? Para além das óbvias chalaças, e nem sequer me refiro àquele sketch do Herman em que vemos Miguel Guilherme a mudar um calendário em que todos os dias são 25 de Abril, não passa de uma data que velozmente resvala para o esquecimento colectivo; essa zona de ninguém onde agora repousam o 5 de Outubro, ou o 1 de Novembro ou outras que já nem sequer são lembradas pelo calendário dos feriados. O que é o 25 de Abril? Uma possibilidade de ficar em casa, um feriado. Sem desencanto, por favor. É esta a ordem natural das coisas. Quem ainda celebra os "amanhãs que cantam", sejamos sinceros, são aqueles que ainda sonham com as oportunidades que outra data, o 25 de Novembro, roubou. Amanhã, no desfile da avenida, estarão de alma e coração os mesmos de sempre: o PC. Os outros vão lá para serem vistos. O BE, algum representante transviado do PS, os populares que recordam com saudade a festa (atenção, verdadeira e sem cinismos) que se fez há 32 anos. E os capitães, claro. Deste modo, os que celebram são aqueles que mais razões têm para achar que as promessas da revolução não se cumpriram. A democracia não é, porém, uma palavra que deixe muito espaço para relativismos, ao contrário do que muitos apregoam. Ou há, ou não há, e isso sente-se na pele, sente-se de coração. Para todos. Universal. Mesmo que seja uma ilusão, uma bela maneira de esquecermos que viver preso a uma série infindável de regras, deveres e obrigações e ainda assim acharmos que o voto conta, é o que mais se aproxima da ideia de felicidade. Enquanto não chegar outra revolução que tome o lugar que a última ainda ocupa nos espírito de um país que cada vez mais se esquece da alegria que hoje se evoca. Para o bem e para o mal, é este o resultado do esforço de tantos. Celebrêmo-los.

24/04/06

Kings of Convenience

Lia no outro dia uma crónica de Pedro Mexia - não preciso de elogiar o livro onde a li, "Primeira Pessoa" - onde ele falava da descoberta de Bob Dylan, e da vontade que sentiu de comprar uma guitarra e tornar-se singer-songwriter, inspirado pela figura de voz roufenha que o iludira. Iludira, porque o convencera de que, para se ser músico, o esforço é mínimo, e, para se ser génio, basta um pouco de sorte e o timing certo. Não sei se Mexia começou a gostar de Dylan antes ou depois de Kurt Cobain, um ídolo para outros tempos, condenado a deixar de o ser com a chegada da idade adulta. Falo por mim, de resto. Também julguei, a determinada altura, que bastava saber tocar três ou quatro acordes para se fazer música, e tinha os Ramones ou os Sex Pistols para o provar. Não será caso para lamentar o engano. E, de qualquer modo, continuo a achar que a simplicidade pode ser o melhor caminho para a genialidade pop. Ou a aparência de simplicidade. Tudo isto para falar dos Kings of Convenience, que vão à Aula Magna no próximo sábado. Duas guitarras, letras de um lirismo ingénuo, duas vozes dissonantes, perfeição para dias de sol numa sala escura. (Também) com Dylan presente. E muito mais interessantes que um Devendra Banhart, por exemplo. Lá estarei.

22/04/06

O Padrinho

Quase que nem vale a pena repetir aquele lugar-comum que diz que, de cada vez que revisitamos um filme de que gostámos (ou um livro, ou um disco) encontramos qualquer coisa que nos tinha escapado antes. No caso de "O Padrinho", escapou quase tudo. Vi, portanto, pela primeira vez, como se toda a iconografia pop associada ao filme nunca me tivesse passado pelos olhos; a cabeça do cavalo, os atiradores na portagem, o casamento revelando em cada detalhe o microcosmos onde se movem os gangsters. E Marlon Brando, reinando sobre tudo, sobre todos. A sequência da morte de Don Vito Corleone, a dança da câmara tentando acompanhar cada gesto, cada movimento, cada esgar do rosto do actor, o notado esforço de Copolla, do olho da câmara em busca de um corpo que transcende a personagem que compõe, é um daqueles portentos que nos podem fazer acreditar no poder redentor da arte, e lamento uma vez mais o cliché. Brando improvisa; improvável aposta de probabilidades reduzidas, que apenas um jogador de nível superlativo pode acompanhar. Copolla dança com Brando. Al Pacino - grande actor - parece que também anda por lá. O pau-de-cabeleira excedentário.

Pacheco Pereira e a revolução

A minha observaçãozinha a propósito da última atoarda aristocrática de Pacheco Pereira terá sido consequência da precipitação de quem não leu com atenção o artigo. Relido então, percebo e detecto uma vez mais os vícios do historiador. Adorei principalmente aquela referência final à luta de classes e ao horror que lhe está subjacente. O percurso de Pacheco fala por si, e não surpreende portanto este combate travado em nome de um status quo que, a cada momento, é ameaçado pela democrática blogosfera. Sobre este desenvolvimento, leia-se, por exemplo, este texto no blogue Cocanha, por sinal mantido por uma das comentadoras visadas por Pacheco, Zazie. O que me parece é que Pacheco lê poucos blogues, e este défice na leitura dos seus companheiros de medium nota-se quando ele refere, a título de exemplo, alguns nicks de comentadores anónimos. Tudo gente que intervém ou no Aspirina B, ou no Espectro, ou no falecido Barnabé, e pouco mais. Aliás, nem se deve dar ao trabalho de clicar nos nomes que comentam, de vasculhar os blogues que estão associados aos nicks. E porquê? Porque ele, como bom burguês que é, furta-se com nojo ao contacto directo com a "escumalha" que, imagine-se, até tem opinião, mas que, na democracia mediatizada em que vivemos, foi empurrada para um palco menos visível do que aquele oferecido a Pacheco Pereira. O que já fora dito há uns tempos atrás, aquando de outra polémica na blogosfera, pode ser uma vez mais repetido: de que se queixa afinal o homem que escreve semanalmente em três publicações diferentes, comenta na televisão e na rádio, publica livros amplamente publicitados e comprados (ou lidos?), e mantém o blogue mais visitado da blogosfera portuguesa? Do lumpen proletário que parasita os blogues de política. Do horror da gentinha de esquerda. Onde está a seriedade deste tipo de argumento?

21/04/06

Amor

Aquele ar enlevado que só uma adolescente consegue exibir, o rosto apontado na direcção do rapaz amado, um sorriso tão sincero que faz qualquer um acreditar que a matéria volátil do amor pode ser tão forte e resistente como um rochedo em face do mar. Ele, enjoado, espreitava o decote de outra que passava. A ingratidão do homem pode ser estupidamente incomensurável.

Agitprop

Euforia geral na blogosfera: Pacheco Pereira falou de nós no Público! Convém agora dizer bem e concordar e linkar, e enviar talvez uns comentários na secreta esperança de que sejam publicados no rodapé do texto, e daqui a algum tempo voltar ao mesmo de sempre: discordar. É sempre sensato dizer mal de quem tem mais poder do que nós.

Senso

Sexo é uma palavra que pode prescindir da beleza.

Passive-agressive

I can't believe that life's so complex
When I just want to sit here and watch you undress
I can't believe that life's so complex
When I just want to sit here and watch you undress

This is love, this is love
That I'm feeling
This is love, this is love
That I'm feeling
This is love
That I'm feeling

Does it have to be a life full of dread
I wanna chase you round the table, I wanna touch your head
Does it have to be a life full of dread
I wanna chase you round the table, I wanna touch your head

This is love, this is love
That I'm feeling
This is love, this is love
That I'm feeling
This is love
That I'm feeling

I can't believe that the axis turns on suffering
When you taste so good
I can't believe that the axis turns on suffering
When my head burns

Love, love, love
That I'm feeling
This is love, this is love
That I'm feeling
This is love, love, love
That I'm feeling

Even in the summer
Even in the spring
You can never get too much of
A wonderful thing

You're the only story that I never told
You're my dirty little secret, wanna keep you so
You're the only story that never been told
You're my dirty little secret, wanna keep you so

Come on out, come on over, help me forget
Keep the walls from falling as they're tumbling in
Come on out, come on over, help me forget
Keep the walls from falling on me, tumbling in
Keep the walls from falling as they're tumbling in

This is love, this is love
That I'm feeling
This is love, this is love
That I'm feeling
This is love, this is love
That I'm feeling
This is love, love, love
That I'm feeling

P. J. Harvey

20/04/06

Kant para principiantes

O que me parece mais irracional no confronto de opiniões é a liminar rejeição do consenso. Tudo funciona numa dialéctica de tese e antítese, surdos gritando contra surdos. O que nos torna humanos, para o bem e para o mal, é o desacordo em relação à síntese.

O não-acontecimento

Seria apropriado dizer que se gastaram rios de tinta em vão se ainda fosse hábito de quem inicia polémicas escrever no papel. Gastaram-se antes horas em frente ao ecrã do computador esbracejando, vociferando, indignando-se por coisa pouca. E, lamentavelmente, a causa até seria louvável. Um episódio esquecido da nossa História. A celebração - no seu sentido mais puro - de um facto que o esforço de muitos tem conseguido apagar dos manuais de História. Confesso que eu pertencia ao grupo dos ignorantes, talvez porque não cheguei a ler o livro de Richard Zimmler que evoca o massacre. Mas basta somar dois mais dois para perceber que uma sociedade que aceita a Inquisição e a conversão forçada de Judeus à fé Católica está apenas a um passo da barbárie. E nisso, provavelmente, não somos melhores nem piores que os demais. Nisso e no hábito de escondermos com vergonha estas manchas que podem, de algum modo, atenuar o orgulho pátrio. Cantar o hino nacional e amar o passado de um país são atitudes que não se coadunam com episódios como aquele que foi recordado ontem, em frente à igreja de São Domingos. De resto, tembém nisso nos parecemos com os outros. Os americanos esqueceram os índios dizimados; os turcos forçam o desconhecimento do massacre do povo arménio; todos os países colonizadores discretamente apagam dos seus livros qualquer referência à opressão sobre os povos escravizados ou à chacina de populações, preferindo antes evidenciar o bem que trouxeram aos selvagens que educaram. Normal. Tudo normal, até a pouca afluência no encontro de ontem no Rossio. A notícia de hoje, no Público, limita-se a um pobre desfilar de nomes presentes no evento. À referência a um kaddish entoado. A um sublinhar das escassas velas acendidas em nome dos cristãos-novos massacrados. O baixo nível de quem tentou aproveitar o acontecimento por razões políticas - e penso nos dois campos que se digladiram durantes algumas semanas pela blogosfera fora - retirou-lhe importância, relegando-o para um grau de não-acontecimento; hoje desmesuradamente inflado, amanhã tristemente esquecido.

19/04/06

Isto não é um post sobre cultura

Gostaria que me explicassem qual a diferença, para além do estilo, entre apelidar um adversário de "alforreca" e falar de alguém dizendo tratar-se de "um caso mental" a estudar. Pode-se ajuizar do bom ou do mau jeito para o insulto, mas não da educação de quem insulta. Quando a discussão chega à praça, não há pregão de peixeira que abafe a barulheira.

18/04/06

Enrique Vila-Matas

Confirmo a ideia que tinha desde a longínqua leitura de "Suicídios Exemplares": o melhor de Enrique Vila-Matas está na ficção pura. Os exercícios de estilo que ele experimentou em "Paris Nunca se Acaba" e "O Mal de Montano" não deixam de ter algum encanto, mas ambos acabam por correr o risco de ser lidos correctamente apenas por críticos e aspirantes a escritores. Livros que falam para o meio, para dentro do círculo. Em "Filhos Sem Filhos", que acabei hoje, respira outro escritor; livre e dominando em pleno o exercício narrativo, apelando à razão do crítico e à emoção do leitor que procura apenas um divertimento mais consequente e hábil. E a sombra de Kafka, convocada na contracapa do livro (edição Assírio e Alvim) quase passa despercebida. Quem precisa de entender, consegue, quem não percebe as ligações ínfimas não precisa de as entender. Prazeres democráticos.

O dogma do cinema

Deve haver uma alternativa no caso da sucessão de João Bénard da Costa como presidente do Museu do Cinema. Entre os defensores do legado indesmentível que consideram o cargo vitalício (uma licença especial) como se de uma fundação privada se tratasse, e os comentadores menos certeiros da atitude conservadora de Bénard da Costa, devemos avaliar a função do Museu do Cinema em Portugal. Para lá dos dogmas criados à volta do cinema, com determinados realizadores acima de qualquer crítica criando amizades e ódios eternos, encontramos na Cinemateca uma escola viva de história do cinema e não um expositor caquéctico de filmes a preto e branco. Como não louvar a iniciativa (se bem que casual) de acompanhar ao piano clássicos como La Passion de Jeanne D’Arc, por exemplo?
Espaço sem comparação em Lisboa, a Cinemateca alia restauro, conservação e divulgação da arte cinematográfica (as edições podiam ser modernizadas), contributos fundamentais para a definição de um gosto crítico do cinema.
Mas, antes de mais, é preciso ver e compreender quase tudo, dos clássicos às vanguardas, para se entender, então, que não há lugar para todos. Como qualquer museu, também a Cinemateca possui um depósito que excede em quantidade (esperemos que não em qualidade) o que é trazido a público. É uma situação intransponível porque depende, em parte, das decisões de quem dirige. É certo que muito Raoul Walsh e Max Ophüls passam na cinemateca, em detrimento, por exemplo, do cinema asiático (salvo excepções como Ozu e Kurosawa). Mas, de Lisboa, Crónica Anedótica a Recordações da Casa Amarela, de Fort Apache a Crash , de Lost Highway a Pierrot, le fou , de Deep Throat a Letter from an Unknown Woman, muitos têm lugar nesta casa que, dizem alguns, é conservadora e fossilizada.
Se tudo pode ser visto, nem todos têm lugar: enquanto museu, e não cineclube, cabe-lhe seleccionar e avaliar numa perspectiva meta-histórica. Aproximamo-nos do consenso quando abandonamos o dogma cinematográfico. Mas, para lá do próprio dogma museográfico, o que resta do Museu do Cinema?

[Susana Viegas]

17/04/06

Velhos

Domingo passado. Leio com interesse ameno no início, espanto a meio, alguma exasperação no final, a entrevista de Maria João Seixas a J. Pinto da Costa na revista Pública. O que me cativou de imediato a atenção foi uma fotografia, espantosa, de Augusto Baptista, um preto-e-branco de um velho caminhando na moldura de um corpo de árvores que se entrelaçavam formando um arco irreal de luz e sombra. Quase que me permito adivinhar o local exacto, a alameda dos Liquidambares, em Serralves - permito-me achar que sim. A entrevista fala de morte. E de envelhecimento. A actividade de Pinto da Costa, director do Instituto de Medicina Legal, assim a conduziu. A ideia não será exactamente original; quem, de entre nós, poderá conhecer de modo mais exaustivo e directo o assunto? Sabemos, e o médico-legista confirma-o, como são necessárias certas ferramentas para enfrentar esse horizonte que limita a existência. Quem a isso é obrigado, por defeito profissional, defende-se usando o desprendimento de toda a metafísica; um corpo é apenas um receptáculo, um instrumento de análise, uma coisa que imita palidamente algo que já não é. A sabedoria que se adquire com este rigor frio de legista é, quase sempre, um estado de graça inalcançável para o comum dos mortais. A determinada altura da entrevista, Pinto da Costa não percebe mesmo o sentido de uma questão de Maria João Seixas, quando esta lhe pergunta sobre o que vem após o fim. Ela fala de metafísica, da alma, e ele responde falando de física, da mecânica do ritual indeciso entre o enterramento e a cremação, do corpo. Os cientistas conseguem disfarçar de forma admirável o medo. Que eu não duvido que eles também sentem, apesar de, por momentos, ter acreditado no modo como a questão foi colocada por Pinto da Costa: morremos a cada momento, cada dia é um dia mais em que somos obrigados a agradecer a continuação da vida. Assim, a morte é obrigada a recolher-se, desaparecer. Bela ideia, e como todas as belas ideias, uma utopia. Escondemos a morte, temos vergonha dos velhos e do envelhecimento. Ponto em que insiste o entrevistado. Quando olhamos para o modo como, por exemplo, está a ser tratado o afastamento de João Bénard da Costa da obra que ele alimentou e ajudou a crescer durante vinte anos, apenas podemos concordar tristemente com a conclusão de Pinto da Costa. A idade de reforma é uma forma que as sociedades modernas encontraram de matar a velhice e os valores que lhe estavam associados: a experiência, a sabedoria, o culminar plácido de uma vida. Fazemos aos nossos velhos o que, um dia, será feito a nós, pelo menos enquanto não se encontrar uma forma mais higiénica de varrermos para debaixo do tapete a pior das imperfeições, a velhice. No fundo, queremos não lembrar a imparável marcha do tempo. Tornámo-nos reféns de uma aterradora cobardia. Vivemos.

Simone de Beauvoir (1908-1986)

Em tempos, escrevi um poema amargo sobre feministas barbudas e mal-consoladas. Retracto-me neste retrato, recordando Simone de Beauvoir. Há direitos que, de tão justos, parece que sempre existiram. Erro crasso. Algumas mulheres modernas deviam saber isto.

15/04/06

Tempo desencontrado

Perdão pela vénia desmesurada que a transcrição da totalidade do texto denota, mas gostava de ver isto publicado aqui, no meu blogue:

Fanfarronice

Eram fanfarrões e a gente sabia-o, mas mesmo assim sentíamo-nos acanhados, ficava a pairar a dúvida de que talvez possuíssem algo que dramaticamente faltava à nossa juventude.
Porque para nós a erecção era um momento frágil, sempre à mercê de qualquer faux pas ou palavra dita a despropósito e que infalivelmente a reduzia a zero. Para eles, não: as suas erecções eram brutamente férreas, as cópulas duravam a noite inteira, os dedos das mãos não chegavam para contar as amantes que tinham, as putas que visitavam, as mulheres casadas que andavam a “preparar”.

***

Estamos num café e ela fala da sua recente visita a Veneza e à Côte d’Azur; da alegria que o Midi sempre lhe causa, da bonomia daquela vida que parece ter o dinheiro e o dolce far niente como principais ingredientes; da sorte que teve ao descobrir lá um pintor genial que dentro em breve irá expor na sua galeria.
Sorrio, bebo lentamente a minha cerveja. Solteira, bem na vida, deve andar perto dos quarenta anos e é atraente porque sabe compensar com charme o que lhe falta de beleza. A nossa conversa chega a um ponto morto e começo a pensar em despedir-me quando ela dispara à queima-roupa: — Este mês já fui para a cama com nove amantes. Brancos, pretos, um malaio, um indiano do Kénia.
Não vejo razão para comentar e ela acrescenta: — E duas mulheres.
Depois conta em detalhe das suas aventuras, das sensações, das técnicas que tem aprendido, de como os asiáticos são mestres no erotismo e capazes de prolongar o prazer horas a fio.
— Horas?
Mais tarde, repensando enquanto espero o eléctrico, vem-me de súbito a recordação longínqua e digo comigo que o mundo mudou, as mulheres mudaram, a fanfarronice tornou-se bissexual.


J. Rentes de Carvalho

Na mouche.

Da verdade

Suplemento Mil Folhas, hoje, uma recensão ao romance de Jorge Reis-Sá. O texto que encima o artigo:

"Todos os Dias, o primeiro romance de Jorge Reis-Sá tem uns dois ou três pecadilhos: um excesso de lugares-comuns, fraca densidade emocional e a falta, menos grave, de poder de sugestão."

Que, supostamente, será uma transcrição do último parágrafo. Compare-se:

"Fora isso, a esta primeira vez de Jorge Reis-Sá apenas se apontará o dedo a dois ou três pecadilhos: um excesso de lugares-comuns, fraca densidade emocional e a falta, menos grave, de poder de sugestão."

Por qualquer obscura razão, saltei do primeiro texto para o último parágrafo, e ainda bem que o fiz. Leio a recensão de fio a pavio, tentando perceber qual o tom da mesma, se o anunciado no texto que enquadra o artigo ou, pelo contrário, domina aquele que o remate do último parágrafo sugere. Nada me surpreende. Fala-se do enredo, das personagens, existe um outro apontamento sobre o estilo ou o contributo da biografia do autor para a escrita do livro (Saint-Beuve, volta que estás perdoado), uma longa enunciação da bibliografia enquanto poeta, antologiador e cronista; o seu trabalho de editor também não é esquecido. Dois pontos a assinalar, se até agora não se percebeu: a vacuidade do artigo, genérico, facilitista, pouco esforçado, marcado pela ausência de um sentido crítico mais incisivo sobre o estilo, as personagens, a construção da narrativa. Pecado menor, de resto, porque comum a quase toda a crítica jornalística. Grave é a discrepância entre o texto escolhido pelo editor do suplemento como apresentação da recensão e o parágrafo que é parafraseado. Sublinho o "apenas", que é estranhamente retirado da primeira versão. Que critério editorial presidiu à decisão tomada? Há histórias mal-contadas que se intuem, relações suspeitas, mesquinhez que se sente à distância. Veja-se quem colabora no suplemento e conheça-se o passado de Jorge Reis-Sá e poder-se-á retirar uma ou duas conclusões. Eu não o farei.

14/04/06

Sexta-feira santa

Bela primeira página do Público, a Pietá segundo Delacroix, de Van Gogh. Sexta-Feira Santa. Famílias perdidas num meio-termo entre uma religiosidade em perda e um materialismo cada vez mais absoluto e desregrado. O sentido que um ateu em construção pode encontrar nestes feriados apenas pode decorrer da estética que a eles está associada. E a memória é também uma questão de estética, neste caso. Recordar o horror mínimo que as reuniões familiares me provocavam não é uma verdadeira opção; é um trauma. Mas a estética da memória pode evocar prazeres que, à partida, estão vedados a quem se limita a passar pelo presente sem ter a corda do passado presa ao pescoço. Olhar um quadro, ouvir uma composição musical, ler um livro. Recorrer à obrigatória memória e passar o objecto sentido pelo seu feroz crivo. Escutar a Paixão segundo São Mateus tendo presente a primeira vez que a ouvi ao vivo; ver o quadro de Van Gogh estampado na primeira página de um jornal e achar que, apesar do pouco interesse que no presente o pintor holandês me desperta, foi um feliz acaso ele ter aberto o caminho que me levou ao conhecimento dos grandes que o antecederam. O Delacroix citado. Rembrandt. Rafael. Caravaggio. Miguel Angelo. A reconversão da religião em matéria estética surge no percurso de um ateu do mesmo modo que o regresso da pintura ao seu pedestal de objecto de devoção acontece na vida de um crente esteta. Adoramos os quadros na exacta medida em que acabamos por odiar a religião e os fanatismos que lhe estão associados. Bem, talvez esta apropriação da primeira pessoa do plural seja abusiva. Falo por mim, evidente. Conheço quem se tenha desinteressado da pintura renascentista precisamente em consequência da aproximação desta ao desprezado sagrado. Esses esquecem que a arte sempre foi um meio de confrontar a ordem estabelecida, mesmo quando na aparência segue os modelos e as regras definidas pelo poder vigente. As poses eróticas das virgens pintadas no Renascimento, os adolescentes pré-púberes de Caravaggio, os rostos de devoção que se confundiam com o facies do espasmo amoroso, será possível maior subversão do que a dos artistas que trabalhavam para a Igreja e patronos católicos?
Enquanto existirem ayatolahs como João César das Neves e éditos religiosos que desaconselham a televisão e a Internet ao praticante, manterei a firme opinião que tenho em relação a qualquer religião monoteísta, em concreto aquela em cujo seio cresci, a religião Católica, Apostólica e Romana. Mas vacilo. Por exemplo, ao ver o quadro de Tintoretto exposto no Prado, "O Lavatório". Quem inspira tal obra de génio desconfio que está muito além da compreensão humana. E eu apenas consigo falar do que conheço.