31/10/06

NADA 8

Já se encontra à venda o mais recente número da revista NADA mantendo, como é hábito, a qualidade gráfica e temática. Destaco a surpreendente entrevista Da Arquitectura Flutuante à Produção do Extraterrestre feita a Marcos Novak (por João Urbano,Tania López Winkler e Giorgio Alberti) conhecido pelas suas experiências pioneiras na arquitectura virtual, espaços líquidos e ciberespaço.

[Susana Viegas]

Greves

As greves vistas por quem as sente na pele - mas não demasiado. Agora, Rui, aquela parte do sindicalismo ser inútil, é de arrepiar os cabelos. Este sindicalismo que temos é "pífio" e esclerosado, sim senhor, mas continua a ser necessário, como, de resto, sempre foi. Já sei, é a diferença entre um liberal e um esquerdista. Mas não acredites em todas as teses arrojadas que por aí abundam. O mercado preocupa-se com tudo menos com regularizar os direitos dos assalariados. Não preciso de entrar em pormenores, mas a História mostra bem a importância dos movimentos sindicais a partir da Revolução Industrial. E não há impertinência liberal que desculpe a evidência. Quanto aos professores, cem por cento de acordo.

[Sérgio Lavos]

30/10/06

Humano

Há uma mediação afectiva entre quem ouve e o som que é produzido. Menos intermediários, talvez seja a questão. Depois do descalabro da música electrónica - no sentido em que, hoje, a vaga mais estimulante da música produzida com recurso a sons sintéticos utiliza obrigatoriamente instrumentos tradicionais - bateria, baixo, guitarra - e penso em LCD Soundsystem, ou Herbert e os músicos com quem colabora, também as experiências de Thom Yorke, nos Radiohead e a solo. Projectos como os Chemical Brothers e os seus concertos com a maquinaria em palco - more human than human - ou os Massive Attack, ambos sobras da década passada, deixaram de fazer sentido. Um regresso à carnalidade dos ritmos imediatos produzidos por instrumentos em contacto directo com o corpo do músico - mãos nas cordas, guitarra encostada às ancas, baquetes transmitindo aos pratos o frémito nervoso do ritmo corporal. Os concertos de bandas de sons predominantemente elctrónicos sempre foram para mim uma desilusão, mesmo quando admiro os álbuns de estúdio. Lembro-me dos Massive Attack, Portishead, mesmo os longiquamente elogiados Young Gods, com o seu desfile industrial de sons samplados. Vou a concertos para sentir a tensão entre músico, instrumento e público, aceitar os erros, comungar com o músico o deslumbramento que deve ser tocar para uma multidão de desconhecidos que cantam, ridiculamente, todas as letras de todas as músicas de um álbum. Se quero racionalizar a música, ouço em casa sozinho ou, melhor, no silêncio de uns phones nos ouvidos. Distingo cada som, reparo nas subtilezas, nas variações de ritmo, nos encadeamentos de timbre e de tons. Ao vivo, esqueço tudo o que aprendi em casa. A música passa a ser um conjunto caótico de movimentos ensaiados em uníssono com as coreografias dos músicos em palco. Agora, racionalizo. No meio da plateia, se existe garra da banda, não me falem em pormenores e defeitos. Depois. Fica para depois. Electrónica ao vivo? Máquinas reproduzindo sons pré-gravados, mãos humanas manipulando teclas e botões, nada de demasiado humano a que me possa prender.

[Sérgio Lavos]

29/10/06

António Lobo Antunes

A natureza humana é, sem dúvida, curiosa: no mesmo passo em que se ensaia a liberdade se tolhe o avanço da mesma. Não falo de grandes problemas. Miudezas. O dia-a-dia. A admiração e a humildade, o engodo e a incerteza de sabermos ao certo aquilo que somos. António Lobo Antunes é um caso. Não é o único, nem agora nem se olharmos para trás, abarcando a memória. Mas quero pensar no pobre (e despeitado) Fernando Pessoa, escrevendo à noite depois do miserável mergulho na sujidade quotidiana, de olhos bem abertos perante a possibilidade da morte - e do esquecimento. Ignorando o futuro radioso da obra que lhe escapava dos dedos, a caminho da glória ilusória que apenas a arte concede. E imagino-o com poderes de vidência. Ouvindo, paciente, no escuro do seu quarto com vista para a tabacaria, António Lobo Antunes contorcendo-se na sua cadeira de entrevistado, incómodo na penosa posição de escritor menor, ao lado de Pessoa. É um sinal de grandeza, contudo. E Lobo Antunes sabe disso. Esquecer os grandes contemporâneos (aterradora, a ignorância em relação ao recente nobel Pamuk), elogiar uns quantos escritores menos lidos e menos conhecidos (sem a possibilidade de lhe fazer sombra), afirmar e reafirmar em tudo quanto é acção de propaganda a um novo livro que apenas interessa a literatura produzida num passado remoto. As manifestações de puro egocentrismo, no entanto, dispensam o juízo do tempo. Podem crer. Ao contrário do juízo dos críticos, que esse anda demasiado amestrado aqui no nosso cantinho tão necessitado de heróis (o exemplo dos Grandes Portugueses não é apenas um acaso). António Guerreiro, no Expresso, alude ao medo cénico perante o grande escritor. Aponta-lhe críticas, mas sempre usando de um finura que revela uma de duas coisas: ou respeitinho pela figura ou hesitação no julgamento. Havia de assim ser nos E.U.A. ou em Inglaterra. O respeito deve-se à obra, não ao putativo herói. E a obra de Lobo Antunes merece bastante respeito. O problema é o circo que a editora monta a cada nova saída. É o papel a que o escritor se dispõe de bom grado - o dos convites aos jornais por parte da editora (como aconteceu com a entrevista de Alexandra Lucas Coelho no Público), é o grande acontecimento com colagem a figura mediática para as novas gerações (Ricardo Araújo Pereira), é o enjoo de entrevistas condicionadas (?) à partida pela editora - é Alexandra quem diz que, antes da entrevista, o "auteur" estava com ganas de falar sobre a actualidade. Somos um país minúsculo, todos se conhecem. António Lobo Antunes não tem de recear qualquer crítica - apesar da lamúria repetida em anteriores lançamentos, de que o país não lhe liga.
Uma análise da obra? Ainda não li este último livro. Mas reconheço-lhe os tiques, aquilo que, para ele, passa por ser um passaporte para a eternidade: a fragmentação, a repetição maníaca, a ausência de preocupações com o enredo, a tentativa forçadíssima da originalidade a todo o custo, com algumas grandes frases pelo meio e outras deploráveis, ostentando um lirismo balofo e desusado - terrível nódoa sobre o pano. Porque se Lobo Antunes pretende que o seu texto se entranhe, não que seja compreendido pelo leitor, se a ele o que interessa são as sensações, não a história, cada frase conta - como sempre, aliás. A falsa polifonia - todas as personagens são uma só, imagino que a voz de um narrador metaficcional, omnipotente, que encarna em cada personagem lendo-lhe os pensamentos e sentido-lhe as sensações - é um logro. Não é original - a corrente de consciência é coisa antiga - e permite que interesses maiores cedam perante o exibicionismo palavroso do autor. Compreenderia o autismo de Lobo Antunes - se a cada frase não tropeçasse num cliché poético. Talvez seja esse o problema - a sua nunca resolvida velha questão com a poesia. O suave afago do país, no entanto, pode-lhe servir de consolo. Pobre Pessoa.

Adenda: um texto que diz tudo, do Luís Januário n'A Natureza do Mal.

[Sérgio Lavos]

Elsinore

Eu, ao contrário da mudança para a hora de inverno, chego sempre atrasado; ainda assim, a tempo de dar os parabéns à Carla pelo 3ºaniversário do seu sítio em Elsinore.

[Sérgio Lavos]

27/10/06

Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos

A distância que separa a América real da América figurada parece, ao olharmos para um filme como "Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos" (e nunca é demais relevarmos o trabalho dos pândegos que arranjam títulos destes em português - o original é "Little Miss Sunshine"), intransponível. A Hollywood liberal vinga-se dos pacóvios provincianos e moraliza ridicularizando hábitos que os americanos "educados" gostariam de não saber que acontecem em território nacional. No caso desta obra, os concursos de beleza infantil, essa abjecção, estética e principalmente ética, que sem esforço se aproxima da exploração do trabalho infantil, isto em plena democracia americana. Os realizadores (Jonathan Dayton e Valerie Faris) podiam ter ido mais longe na farsa, mas será uma questão que se imponha naturalmente? As opções decidiram-se à partida. O grupo de actores, casting perfeito, recusou ao filme o caminho da subversão amoral. Dayton e Faris acabam por construir um objecto invulgarmente conservador, apesar do especialista em Proust gay ou do avô heroímano. Em termos formais, o filme é plano, sem tiques de autor visíveis - e podia ter sido uma tentação, dada a aprendizagem no mundo dos videoclips -, mas há alguns enquadramentos que acabam por se destacar da planura: a paragem à beira da estrada, para consolo do adolescente problemático, deixa que o espectador espreite por uma nesga a paisagem americana - pela estrada fora, um desfilar contínuo de diners e estações de serviço, em tom de road movie familiar. Os gags resultam, pelo talento dos actores. A directora de casting mereceu cada tostão que ganhou. A fixar: Greg Kinnear (o pai), Toni Collete (a mãe), Steve Carell (o tio), Alan Arkin (o avô), Paul Dano (o filho) e a miúda adorável, a Miss Sunshine falhada do título, Abigail Breslin (a filha). A família, convulsiva, disfuncional (todas o são, é lugar-comum), imperfeita. E no entanto base de todo e qualquer indivíduo, como um nó que ao mesmo tempo prende e salva. A certa altura, diz a mãe: "We're family". Como se isso desculpasse tudo.

[Sérgio Lavos]

Muse


Confirmam-se os rumores. Os Muse são uma grande banda ao vivo. Muscle music.

25/10/06

Chuva

Não se duvide da irreprimível tristeza que a chuva sabe trazer. Porém, há uma intimidade insólita no meio do temporal que faz lá fora. As pessoas, quando são obrigadas a partilhar os pequenos reveses da vida - nem que seja uma molha das antigas, como as que se costumavam apanhar a caminho da escola - animam-se, deixam cair a carranca do quotidiano. Uma sensação de humanidade. Enquanto dura, sabemos que a Natureza há-de sempre gozar do seu poder, sem qualquer margem para a racionalidade. Estamos à sua mercê. E isso aproxima-nos.

[Sérgio Lavos]

24/10/06

Alice in Chains

Há uma história a ser contada, subterrânea, ignorada e distante das luzes da fama persistente. Um combate perdido contra os cinco minutos de que falava Andy Warhol, "one hit wonders" e maravilhas sem nenhum êxito, que apostaram, em alguma altura da vida, muito e acabaram por perder tudo - ou quase. O Pedro Mexia fala dos "The Sound", mas poder-se-ia pensar em todas as bandas que nos disseram algo em alguma altura da nossa vida e de quem nunca mais ouvimos notícias. As más, claro, as menos más e as marcantes. Os "Alice in Chains", para todos os que gostaram de grunge, poderiam ter sido a banda em que os "Pearl Jam" se tornaram. Ainda bem que não aconteceu assim - apesar de nada se poder apontar ao instinto de sobrevivência de Eddie Vedder. Layne Staley foi encontrado morto em Abril de 2002, tendo sido apontada como provável data de morte 5 de Abril, o mesmo dia em que morreu Kurt Cobain. A sua longa luta contra a dependência acabou por ter um final inglório - mas foi essa luta que permitiu à banda a que ele pertencia registar os seus momentos de glória. Não se pode falar em sofrimento necessário - a fonte de toda a criação. O som pode estar desactualizado - o relativismo citacionista [sic] da maior parte da música que se faz agora esvazia de sentido os anos do grunge e a sinceridade crua que lhe estava associada. Até ao próximo retorno musical, ouvimos os originais. "Alice in Chains" a tocar (do lado direito) durante os próximos tempos.

[Sérgio Lavos]

23/10/06

Excepção

O mercado tem, no entanto, algumas vantagens. Permite que exercitemos o ofício da mineração, obriga-nos a encontrar pepitas fabricadas por alguns que ainda não cederam às leis selvagens do liberalismo económico. Por outras palavras, sem fru-fru de rendas, há quem ainda edite por gosto. Não é fácil encontrar por aí os livros da editora Livros de Areia (link para o site). Mas vale a pena. O design do site é impecável (e vale a pena procurar o trailer da próxima saída, de uma originalidade inédita por cá), os livros recomendam-se. Os autores publicados espelham, desconfio, o gosto dos editores. E a julgar pelos títulos, é um gosto exemplar. O livro de Eduardo Galeano sobre futebol passou ao lado do Mundial da Alemanha, mas não devia: é excelente. Rhys Hughes, um galês apaixonado por Borges, também é bastante legível. E neste momento leio o primeiro livro de Jeff VanderMeer (também ele editor nos E.U.A.), onde se cruzam os mundos de Kafka, Chesterton e Borges de modo original, o que, diga-se de passagem, poderia ser uma tarefa complicada, dada a sombra que tais figuras conseguem projectar. No site pode-se encontrar as livrarias onde estas obras estão disponíveis. A visitar.

[Sérgio Lavos]

22/10/06

Os grandes latifundiários

Queixa-se João Paulo Sousa, citando António Guerreiro no Expresso, de que a edição de obras de cariz menos comercial, seja ficção ou pensamento na área das ciências sociais, está ser completamente submersa pelo dilúvio de má qualidade que inunda neste momento as livrarias. Aproximamo-nos do colapso, é certo, e até posso dar o exemplo de uma obra recensionada por Eduardo Pitta para o Mil Folhas, o romance de Luísa Costa Gomes, "A Pirata". No meio do entulho que as editoras conseguem colocar nas livrarias, aí está um exemplo do que acontece a um livro bem escrito, sem pretensiosismo de qualquer espécie (a não ser o da exigência da autora), que por acaso até pega num tema que está novamente na moda - graças ao filme "Piratas das Caraíbas" - e que também por acaso se destina a uma fatia do público - juvenil - que acaba por consumir livros numa média bem mais invejável do que a maioria dos adultos o faz - ao contrário do que julgam algumas cabeças bem-pensantes deste país -, mas que, quase que aposto, vai passar despercebido durante os próximos três meses até desaparecer nas prateleiras da editora, devolvido pela livraria. Razões? Tudo começa, lamento, na editora. Estará Luísa Costa Gomes disposta a percorrer o calvário da promoção do livro? Se está, porque não aparece, não promove? Porque a editora não quer. Está interessada antes em valores seguros - no caso, o próximo Lobo Antunes e quem sabe se uma Inês Pedrosa vindoura - ou então promove um qualquer sucedâneo de "O Código da Vinci", ou o livrinho escrito em forma de redacção da primária sobre as aventuras sexuais de uma dona-de-casa, etc, etc. O que é negociado com os livreiros, em termos de promoção no espaço da livraria, não são os autores exigentes consigo próprios - de qualidade, se quisermos ceder a esse termo por vezes equívoco -, muito menos as obras nas áreas das ciências sociais ou da divulgação científica. Por exemplo, um representante da Presença queixava-se de que o recente Prémio Nobel, Orhan Pamuk, não vendia (até agora, claro). Mas terá a editora feito algum esforço para promover as obras de Pamuk junto dos livreiros, quando foram inicialmente publicadas? Eu sei que não. Quem manda nas editoras, cada vez mais burocratas encartados com cursos de gestão ou marketing que consideram o livro um produto qualquer, pensa apenas no lucro máximo. Esta estratégia, é óbvio, apoia-se nas fraquezas do consumidor. A ignorância, a iliteracia, a falta do tal "sentido crítico" de que fala António Guerreiro. O curioso é que há livros que escapam ao torniquete cego dos novel editores e fazem o seu caminho de forma surpreendente. Nas áreas citadas, lembro-me por exemplo do livro de José Gil, "Portugal Hoje, o Medo de Existir" ou as obras de Nuno Crato sobre educação ou alguns títulos sobre ciência de Jorge Buescu, editados pela Gradiva. Ou ainda o assinalável êxito que representa cada novo livro de António Damásio. Mas atenção! Neste último caso, a promoção é feita como deve de ser. As entrevistas da praxe, as negociações com os livreiros por parte da editora (a excepção na Europa-América, diga-se, quase sempre apostada em baixar o nível em todos os livros que edita), as aparições regulares nos ecrãs de televisão.
As editoras, interessam-se por estes fenómenos? Poucas, porque a ignorância começa em quem manda. O clássico editor, leitor incansável, amigo pessoal dos seus autores, culto e interessado na divulgação do conhecimento, é cada vez mais um mito. Entramos na era da globalização, parece. Mas não parece, se pensarmos nos exemplos lá de fora. O caso da Penguin, dissecado esta semana na páginas do Mil Folhas, é disso exemplo. Um dos maiores grupos editoriais do mundo, que conseguiu crescer e manter a estabilidade financeira sem nunca descurar o objecto primordial, de onde o lucro nasce: o livro. Lições que os nossos plantadores de bananeiras, aqueles que dirigem as maiores editoras, deviam seguir com atenção. A matéria é vegetal, é a mesma, mas a alma é diferente. Quem perde com a cegueira economicista é o leitor.

[Sérgio Lavos]

18/10/06

Os parasitas

Não sei, e sinceramente não me interessa saber, se a opinião pública dos países civilizados de que nos vamos irremediavelmente afastando tem a mesma simpatia que a nossa em relação aos artistas, essa fauna de lunáticos, abstractamente ociosa, que apenas consegue reunir forças para sacar o subsidiozinho da ordem ao Estado matriarcal, sempre pronto a deitar a teta de fora. Estarei errado, exagero? Julgo que não, e se ainda não consegui captar a atenção de quem por aqui passa para este texto, será apenas por manifesta insuficiência do estilo. Explicarei: do proletário mais aferroado ao burguês mais bem instalado no seu conjunto de créditos, ninguém escapa; "cambada de chupistas! Horda de preguiçosos e inúteis que se limita a mimar umas coisas para outros como eles, enquanto o resto do pessoal se esfalfa a trabalhar 40 horas ou mais por semana para conseguir pagar as prestações e os luxozinhos burocráticos!" O intelectual liberal - no novo significado da expressão, muito distante das velhas esquerdas de outros tempos ou dos "extremistas" americanos - segue a manada: toca de picar o morto. Que o mercado se rege por leis muitos simples e que por isso a cultura nunca deixará de existir, ainda que não existam subsídios; que uma cultura parasitária não é independente do poder que a sustenta - e o legado de Carrilho assim o prova; que a pouca criatividade e a estagnação da maior parte das áreas culturais no país são uma consequência directa da estatização das artes. Tudo claro, certo? Lamento, mas errado. A desconfiança em relação aos artistas é das mais provincianas atitudes que este país tem. Desde o taxista de palito no dente ao intelectual de direita, bem lido e melhor informado, ninguém escapa. Divaguemos um pouco. E se, por acto divino, desaparecessem de um momento para o outro todos os artistas deste país, toda a medíocre criação dos medíocres artistas que temos. Ao taxista tanto se lhe dá como se lhe deu. A ele basta o copito, a bola e a cultura da violência doméstica. E o intelectual de direita, o que fará? É verdade que ainda pode ler a imprensa internacional e a literatura em língua estrangeira, mas, miseravelmente, ficará órfão do seu objecto de maledicência, não dos espectáculos em si, porque esse ele não os frequenta (quem quer saber de dança contemporânea, performances paradas ou instalações em movimento, quem se interessa pelo teatro independente, aliás, quem quer saber de teatro, tirando as companhias consagradas?). A falta que lhe farão os artistas parasitas! Porque, não se duvide, falamos de política, não de cultura. E, já se sabe, má-sorte a maior parte destas criaturas ser de esquerda - e falo, não esquecer, dos artistas que parasitam o contribuinte sem dó nem piedade.
Irrita-me o provincianismo português, e mais ainda aquele que se dá ares de cosmopolitismo anglo-saxónico. Pois se é verdade que nos E.U.A. não existe cultura subsidiada e nem por isso deixa de haver lugar para a diversidade criativa no país, também é verdade que, por exemplo, no Reino Unido grande parte das companhias de teatro são subsidiadas, o que contradiz aquela ideia de que a arte dependente de dinheiros públicos não é estimulante. O facto de, por exemplo, o teatro isabelino ter florescido graças ao apoio do Estado será coincidência? E Harold Pinter, terá trabalhado toda uma vida para companhias independentes?
A generalização, enfiar todos os artistas no mesmo saco, leva a que não se discuta os problemas de um modelo altamente dependente do apoio público. A Rui Rio pouco importa se os gestores privados do espaço produzem ou não uma oferta cultural de qualidade. Quer apenas cortar nas despesas, e falamos de um espaço emblemático da cidade. Poderão os portuenses que se interessam dar-se ao luxo de perder tanto por tão pouco - o inenarrável Rio?

[Sérgio Lavos]

17/10/06

Tentar

Quando escrevo sobre a arte de emendar, sei do que falo. Nada nas minhas mãos consegue durar muito tempo. Não preciso de Beckett para me lembrar de tudo o que não conseguirei tornar definitivo. Tentar, sempre tentar.

[Sérgio Lavos]

Emendar

No Expresso desta semana, Joaquim Manuel Magalhães escreve sobre a consistência que uma obra pode ter nas mãos do autor. Fixa dois pontos opostos na sua cartografia da inconstância: o poeta que escreve, publica e não volta a tocar no texto, como se este, ao revelar-se ao mundo, deixasse de pertencer ao criador; e o poeta que emenda, rasura, apaga, reescreve. Como exemplo dos dois extremos refere Jorge de Sena – e sublinhe-se o pudor usado, obsequiando em avanço alguma eventual falha no julgamento – e Carlos de Oliveira. Interessante exercício, que não deixa de conter na entrelinhas uma auto-reflexão premente - e quase irónica. Joaquim Manuel Magalhães (JMM) pertence, desde a publicação da sua obra refundadora “A Consequência do Lugar”, ao segundo grupo, dos que não se demitem das responsabilidades perante o poema, considerando-o um erro em progresso, e por isso mais perto da vida, da matéria que imita. As conclusões a que chega JMM acabam por revelar mais sobre as suas próprias estratégias do que sobre as estratégias dos outros. É ele quem escreve: “Estas posições face à obra já escrita, que oscilam entre dois extremos – ou nunca alterar absolutamente nada do alguma vez publicado ou contínua e radicalmente sempre alterar em todo o momento em que entende fazê-lo – têm um significado profundo que ajuda a compreender não só o perfil psicológico do poeta em causa como os próprios mecanismos críticos do seu entendimento do que é a língua da literatura.”
Este parágrafo revela exactamente aquilo que JMM quer revelar: o entendimento da sua própria obra. Quase que se pode adivinhar em que grupo ele se enquadra, e a pista decisiva ele dá-a quando narra um encontro entre ele, Eugénio de Andrade e Carlos de Oliveira, em que este admite a sua vergonha em presença de figura tão admirável como Eugénio. “Desconfiança” e “incerteza", são os termos que JMM usa. Carlos de Oliveira emendava com medo do seu próprio falhanço. Jorge de Sena não errava – ou então tinha nojo daquilo que produzia e nunca mais se atrevia a olhar para os poemas; hipótese sem dúvida mais sedutora. Herberto Helder, desconfio, é de outra estirpe. Muda para produzir obra nova, o labor poético em Herberto é produção, máquina lírica, crescimento incontrolável, excesso e vertigem – que nunca pode acabar. Eugénio de Andrade alterava pouco, fazia acertos, reencontrava o rigor que a juventude não lhe tivesse permitido assegurar. E Joaquim Manuel Magalhães? Escreve como um crítico, adequa a obra antes publicada à linguagem da obra presente, torna o discurso coerente e homogéneo, modela os poemas antigos à forma actual, alisando as rugosidades de outras épocas – e, julgo, adaptando também a sua poesia do início ao modelo teórico que actualmente defende. Nada censurável, de resto.

[Sérgio Lavos]

16/10/06

Ponto da situação

Bem gostava de ter um blogue em fuga; da notícia diária e diariamente esquecida, do tema fixo e para especialistas, do recorte de vida para amigos e conhecidos. Consigo escapar do segundo e do terceiro, menos do primeiro, mas assim cumpro a função original deste meio: o diário. Outras experiências expressivas, tento-as de vez em quando, e surgem-me desadequadas. E o blogue é também da Susana. Não sei até quando - nunca se sabe - nem com que regularidade, mas vou dividir os meus esforços de escrita entre esta e outra casa, a que regresso, como alguns leitores já sabem: o Arquivo Fantasma. Neste conto publicar tudo o que não interessa: exercícios de escrita inglórios e tentativas vãs de dançar no vazio - isto não pode ser apenas pessimismo. Por aqui, falo do que verdadeiramente não importa, notícias do quotidiano e as minhas visitas regulares a coisas tão pouco interessantes como salas de cinema, jardins, livros e parques de diversão fantasmas - esta última é só para despistar. Tentando diariamente não coincindir com os interesses da blogosfera em geral, com o assunto do dia, tentando manter um registo desfasado do tempo, para meia dúzia de interessados com muito tempo em mãos para perder. Esqueçam grandes projectos; falho tudo. Quem escreve de graça ou é burro ou um atirador vesgo: errando sempre o alvo. Contem com isso.

[Sérgio Lavos]

15/10/06

A Dália Negra

Há duas sequências que vale a pena ver em "A Dália Negra", de Brian de Palma: quando o corpo de Elizabeth Short é descoberto e o crescendo culminante que antecede a cena. E a sequência da escadaria, quando Lee Blanchard (Aaron Eckhart) é morto. Mas nada acontece por acaso. Ambas as sequências são decalques de outros filmes: no primeiro caso, de Palma emula a panorâmica inicial de Orson Welles em "A Sede do Mal", e a cópia é quase perfeita. A pequena cidade de fronteira no filme de Welles, montada num estúdio em Los Angeles nos anos 50, é evocada no cenário erguido na Bulgária por Dante Ferretti, longe no tempo e no espaço da Los Angeles dos anos 40 em que James Ellroy ambientou a história. Mas enquanto que Welles consegue, nesse movimento de câmara, transmitir o tom de decadência e corrupção trágico que marca todo o filme, de Palma apenas nos faz sorrir pela citação. Genial, apenas pelo tom pós-moderno e pelo reconhecimento de um estilo: o pastiche, mais ou menos óbvio. Para mais, o próprio livro de Ellroy é já assombrado pelas memórias cinematográficas dessa época (a sua infância), incluindo a obra de Welles - uma das cenas esquecidas na adaptação cinematográfica passa-se num México tão sujo e corrupto como o que aparece em "A Sede do Mal". Esta "boneca russa" de de Palma tem o seu paroxismo libidinoso na sequência da escadaria, declinada a partir de um plano decalcado de outro filme do realizador, "Os Intocáveis", que por sua vez já imita a cena da escadaria de Odessa em "O Couraçado Potemkin", de Sergei Eisenstein. A partir daquele plano, que suspende o tempo fílmico e prepara o espectador para as imagens que se seguem, sabemos que a obra se vai resolver de modo dramático. O "pathos" repete-se numa auto-citação falsa, e portanto irónica: o desenvolvimento da acção afasta-se da técnica eiseinsteiniana do plano de pormenor intercalado com o plano mais afastado e aproxima-se de Hitchcok em "Vertigo", do jogo de picados e contra-picados, quando Madeleine (Kim Novak) - também nome de personagem em "A Dália Negra" - é empurrada do cimo da torre da igreja. No filme, é Madeleine (Hilary Swank) que empurra, e de Palma vinga a morte de uma personagem memorável da única maneira possível: através da imagem ficcionada.
Cada imagem, nos filmes de Brian de Palma, vale por muitas imagens: as de todos os filmes que são citados e homenageados em cada cena. E o jogo a que ele se propõe acaba por ser menos intelectual, como acontece, por exemplo, em Peter Bogdanovich, e mais lúdico. Tudo pode servir como material de trabalho. O que nos leva a uma pergunta: onde acaba o cinema dos homenageados e começa o cinema do homenageador, de Palma? Esqueçam a retórica: uma imagem apenas pode valer por si própria.

*Em cima, podemos ver Scarlett Johanson fingindo ser Kay Lake, fingindo ser Eva Marie-Saint em "Intriga Internacional". Já chega de citação?

[Sérgio Lavos]

Elizabeth

Não diria superseca. Mas a Isabel I de Miranda Richardson é insuperável, sem dúvida. Nem Judy Dench nem Cate Blanchet, nem agora Helen Mirren: demasiado fútil para uma série que se pretende séria, demasiado "dama" para uma comédia - o meio de onde vem o argumentista Nigel Williams. Vamos esperar o segundo episódio.

[Sérgio Lavos]

11/10/06

O museu

O sonho de Gustav era compor uma galeria macabra de ditadores. Facínoras, sanguinários, lunáticos. Homens cujo rosto oscila entre a demência e o ridículo, caretas facetas que nem a pior das selvagerias salva da farsa que a expressão invariavelmente trai. Como o poderia fazer, pensava Gustav? Havia alguns mantidos numa morte suspensa, mumificados para desfrute das gerações vindouras. A maior parte, porém, resistia apenas em fotografias. Mas talvez houvesse uma maneira. De qualquer modo, não era obrigatório que o corpo estivesse no seu lugar do museu. Uma imagem bastava, uma fotografia. Bigodes retorcidos, buços femininos, braços estendidos, ceptros esculpidos a partir de ossos, tronos erguidos sobre a cinza dos cadáveres, óculos, cabeleiras, dentes postiços, barbas de molho, a família em volta, rodeando o avozinho de mãos manchadas de sombra, sinistra sombra, caricaturas de um arquétipo criado por um qualquer deus irónico e cruel. Uma imagem, apenas, no lugar do corpo, e etiquetas com os nomes por baixo, duas datas, a vida e a morte, e um intervalo de tempo preenchendo meticulosamente relatórios e ficheiros com números organizados em colunas, ao longe apenas uma mancha indistinta assemelhando-se a fumo, mais longe nada a não ser memória, mais longe nada a não ser nada. As imagens multiplicando-se para deleite dos visitantes do museu, Gustav imaginava e nesse enlevo se perdia, generoso curador de uma estranha galeria de monstros.

[Sérgio Lavos]

10/10/06

Antes do amanhecer

Os dias. Os dias aparentam prolongar-se além do verão que terminou. Sinais que se repetem, o calor e a disposição amena da multidão suburbana a caminho dos empregos. Ainda não se vêem camisolas de lã, poucos chapéus, a depressão sazonal teima em acampar ao largo, os espíritos sobrevivem à luz da derradeira humanidade estival. Nem o trânsito se denuncia. O gigantesco animal do mundo enrola-se com gestos pré-históricos à cidade presa num tempo cego e estagnado, os veículos fluem mais devagar mas continuam a chegar ao seu destino, há poucos acidentes a reportar, o metro nunca pára.
Talvez anseie o frio, apenas isso. Coitados dos ossos, atraindo a película de tristeza em redor, aquela que se destaca naturalmente em altura de hesitação e pudor da vida violenta. Um país que não sobrevive ao gelo e à neve não merece a alegria do ciclo das estações, as celebrações pagãs que se perpetuam em regiões a norte de qualquer esperança.
Será saudades do verão, e confesso a minha genealogia maldita. Trocava de bom grado a luz esquecida da estação anterior por um pouco de frio de... por exemplo, Viena. Seis meses depois, o tempo que não se lembrou da hora marcada. A bolha cresceu até ao limite urbano da cidade. E eles já não estavam lá.

[Sérgio Lavos]

08/10/06

O jogo

O jogo, disposto sobre o pano verde, era aberto. Cada carta valia por si própria, e a mão que ele mostrava não era menos forte que aquela que ele escondia. As mensagens paralelas seriam assim acessórias, a clareza dos movimentos previa que o desfecho fosse rápido e ele prescindisse, se fosse caso disso, da mão escondida. Tudo factos evidentes, daqueles que vêm escritos em tratados da modalidade. Ele, no entanto, entendia a sua estratégia de modo diverso. Preferia percorrer estranhos trajectos, transgredir e hesitar voluntariamente em vista da solução óbvia. Quando se sentia obrigado a jogar a carta necessária, fazia-o com um esgar amargo e enfadado, os dedos atirando com algum desprezo o pedaço de papel na direcção do adversário. Este, placidamente, respondia à sobranceria e continuava a jogar como se nada fosse.
O jogo, disposto sobre a mesa, avançava. Quando se começou a aproximar do fim, as jogadas ganharam um novo fôlego, e a hesitação artificial transformou-se em pressa nervosa. O outro jogador mantinha a calma. Ninguém poderia adivinhar que a mão escondida resolveria a contenda para um dos lados. Menos ainda se poderia prever o surpreendente final, as nuances de uma vez por todas desvendadas. Quando ele se retirou, braços caídos e preso de uma profunda melancolia, o adversário recostou-se na cadeira. Enquanto reunia o baralho, uma carta saltou da manga. Lesto, pousou o cigarro que acendera na borda do cinzeiro e deu um piparote com a ponta do polegar e do indicador, fazendo voar a carta em direcção a algum lugar incerto. De costas, o outro não via. E ele sorria.

[Sérgio Lavos]

05/10/06

A árvore

Na nossa barbárie actual encontra-se em actividade uma teologia extinta, um corpo de referência transcendente cuja morte lenta, incompleta, deu lugar a formas e sucedâneos paroxísticos. O epílogo da crença, a transformação da fé religiosa em convenção oca, parece ser um processo mais perigoso que os philosophes tinham previsto. As formas de degradação são tóxicas. Em busca do Inferno, aprendemos a construí-lo e a fazê-lo existir na Terra. (...) Não há outra capacidade humana portadora de maior ameaça. E porque a possuímos e a usamos sobre nós próprios, vivemos hoje uma pós-cultura. Tendo colocado o Inferno à face da terra, abandonámos a ordem suprema e as simetrias fundamentais da civilização ocidental.

George Steiner, No Castelo do Barba Azul, ed. Relógio d'Água

O texto, resultado de uma série de conferências que Steiner proferiu em 1971 na Universidade de Kent a convite da T. S. Eliot Memorial Lecture Foundation, é uma resposta ao livro de Eliot, escrito em 1948, Notas para a Definição de Cultura. Ou antes, é um questionamento directo a Eliot, uma interpelação póstuma à lacuna principal do texto do poeta católico. Porquê o esquecimento do Holocausto? Mais de 30 anos depois, quase tudo se mantém: as perplexidades de Steiner, as propostas que são apresentadas para a tentativa de compreensão do mal humano. As raízes, de acordo com Steiner, fundam-se longe, na revoltosa transição do século das Luzes para a Revolução Industrial. Seria interessante conhecermos hoje a opinião de Steiner sobre a árvore que entretanto foi crescendo - e que parece não ter fim à vista. A experiência de purga a que ele alude, será, mais do que nunca, essencial?

[Sérgio Lavos]

02/10/06

O Público afecto ao Porto

Afinal não fui só eu que achei ridícula aquela crónica do Bruno Prata pós-derrota do Porto em Londres. Não sou do Sporting, mas com o resto, de acordo a cem por cento - ler aqui, por Carlos Leone.

[Sérgio Lavos]

Do excesso de aspas

Não me peçam para explicar a diferença entre as aspas assim: "" e assim: «». Se me falarem de parênteses, tudo bem, abro um parênteses: (onde poderá caber o que bem me apetecer, cumprindo as regras da gramática ou estando-me a marimbar para elas; de resto, posso acabar aqui e fechar o parênteses: ), mas não estou para aí virado. Comprei quando era jovem - essa extraordinária categoria etária que engloba desde um recém-nascido até a um quarentão iniciando o seu negócio por conta-própria - uma gramática, mas descobri, ao fim de algumas páginas, que ela não revelava o segredo dos escritores. Por muito boa que seja a gramática, ela nunca poderá ser como aqueles manuais de magia que desavergonhadamente destapam a careca dos ilusionistas; nunca poderá demonstrar matematicamente a poesia. Nem os erros ortográficos escapam ao desnorte do génio literário. Há manuscritos que envergonhariam qualquer revisor minimamente formado.
(Essa bela raça, os revisores... que julgam poder emendar de forma tão brilhante como o fez antes o escritor. Pequenas vinganças. Corrigir o autor! E o recensionista - que rima com ascensorista -, o upgrade do revisor literário, sempre à cata da pulga no dorso bamboleante do escritor. É uma metáfora mais ronhosa, lá está ele! Uma sinédoque mal-amanhada, zás! Um livro anão numa obra de gigante, ferrai-lhe o dente! As alegrias breves que um grande revisor ou um pequeno recensor - ou será recensionista? Que rima com recepcionista... - podem sentir...)
Não sei bem se posso terminar o parágrafo de cima com um parênteses, mas o prontuário não está neste momento à mão, e não está também em uso à beira da sanita. O que me lembra da expressão popular, à beira, à beirinha, confiadamente pouco utilizada na língua portuguesa. São dois já, dois advérbios de modo inteiros e unos, o melhor é deixar o texto por agora, deixá-lo levedar, até que ganhe corpo. Não passa de uma série desconexa de signos aleatórios, descodificados por uma linguagem binária criada por alguém que certamente (e vão três) não perderia muito tempo em excessos verbais desnecessários. Querem um poema? E=MC2.

[
Sérgio Lavos]

Literatura

Vejo a multidão de editores que afirmam que se lê mais, sim senhor, e que por isso não é exagerado o número de livros que saem todos os meses em Portugal. Vejo os escritores da "geração Margarida Rebelo Pinto" ou a brilhar fatuamente em programas do "socialite" português ou então a ser apenas um nome na capa de um livro que sobrevive durante três meses nas livrarias - para cair no esquecimento. Vejo as editoras a multiplicarem-se em colecções, chancelas, parcerias, e o diabo a sete, mas não vejo livros melhores a serem editados. O lixo que todos os dias me passa pelas mãos encheria 100 bibliotecas de Alberto Manguel, entrevistado por Alexandra Lucas Coelho na revista Pública. Deste autor, de quem conheço apenas "Uma História da Leitura" - tão fundamental, de resto, como um livro da biblioteca imaginária de Borges - está tudo por editar, mas ninguém se incomoda. Os brasileiros, apesar do baixo nível de literacia, sabem mais do assunto do que nós. Traduzem tudo, desde o espiritualismo mais inútil até à obra mais intraduzível: O "Ulisses", de Joyce, por exemplo. Manguel, que não escreve numa língua propriamente desconhecida - em inglês, imagine-se - tem sido publicado lá pela Companhia das Letras - nos blogues tenho visto várias referências (sobretudo n'A Origem das Espécies) ao seu livro impossível (e sem fim à vista): "Dictionary of Imaginary Places", uma colecção de lugares inventados pela literatura.
Nas livrarias, o novo leitor entra e pergunta pelo livro do senhor que apareceu na televisão. "Sabe, aquele de que se fala agora". E o livro que o professor passa rapidamente à frente do ecrã. Interessa, não interessa? Manguel fala das escolhas do leitor - quando entra numa livraria ou biblioteca e tem à sua frente o objecto, pronto a ser tocado e mexido e lido e sentido até a decisão ser tomada. Mas existirá actualmente esta escolha? Se o novo público dos livros é esta horda de bárbaros que não distingue o esforço de um escritor de um peido de uma celebridade televisiva, então que a leitura continue a ser uma actividade elitista. Quem acaba por sofrer são os verdadeiros leitores, privados da edição daquilo que interessa em desfavor da próxima "besta-célere". E pensar que milhares de árvores são deitadas abaixo para produzir aberrações em forma de livro; se não fosse por mais nada, seria suficiente o sentido ecológico para defender este elitismo. A mortandade parece não ter limites.

[Sérgio Lavos]