31/12/07

Olímpio

Procurei um parágrafo de Vila-Matas que li ontem, quando pensei nele (e já não o via há tantos anos). Não encontrei, mas falava de cada um de nós como paginador, cujo trabalho ingrato consiste em ir adequando o texto à página sem saber o que virá a seguir; a metáfora aproximava esta tarefa à vida: compor as coisas que fazemos na esperança que essas coisas se encaixem perfeitamente no tempo que virá. Hoje a notícia desordenou todos os parágrafos que a vida tinha alinhavado para ele. Conheci-o pouco, mas marcou muito. Um tipo culto, excelente livreiro, óptimo gráfico, exigente editor da revista Intervalo. Não é justo que o Paginador lá em cima trate assim gente como ele. Procurem o nome do Olímpio Ferreira na ficha técnica dos livros da Tinta da China, da & Etc, da Averno (belíssimos, os livros produzidos para esta editora). Em sua memória.

[Sérgio Lavos]

30/12/07

Ao balanço de 2007 (blogues)

Meus amigos, meus bloggers, caros, caríssimos:
Em tempos, quase que fui convencido a entrar num convento. Não para uma visita turística, nem para filmagens demoradas e consequente consagração fílmica mundial. Nada disso. Nem sequer era um convento feminino, apesar de, durante muito tempo, terem pairado no meu espírito umas imagens de freiras a divertirem-se com objectos de dimensões generosas, mas adianto-me ao falar de cinema italiano dos anos 70. Pensando bem, não era um convento. Era um seminário. Mas sobrava-me em rebarbagem hormonal o que faltava em fé, e tudo se conjugou de uma forma perfeita: escapei a uma vida consagrada ao silêncio. Agora, falo, falo, falo, mas não me peçam para falar de Deus nesta quadra, até porque, garanto, a blasfémia de Richard Dawkins (A Desilusão de Deus) concorreu em grande estilo com a de Christopher Hitchens (Deus Não é Grande) no capítulo das ofertas natalícias deste ano. Enfim, paradoxos da modernidade.
Amigos, pois então deixai que eu vos aborreça um pouco mais, com o meu top blogger do ano. O cálculo complicadíssimo que fiz para chegar ao resultado final acabou por valer a pena. É fácil: os meus blogues do ano são quase todos os que tenho linkados na coluna da direita, excepto os seguintes que, por hábito ou desfastio, clico diariamente e portanto nomeio os blogues, mesmo blogues do ano a sério:

A Causa Foi Modificada (imagino o torso masculino que este troféu não mereceria, se o maradona se dignasse vir aqui)
Irmão Lúcia (longe da selecção olímpica, amigo, muito longe, mas nem por isso mais perto do Céu)
Estado Civil (lamento o carácter recíproco e amiguista desta nomeação, mas, ainda assim, obrigado)
In Absentia (independência, rigor, descomprometimento - parece o programa do governo, mas é muito melhor)
As Aranhas (mais um a equivocar-se redondamente com Diespinnen)
Pastoral Portuguesa (ele não merece, pelo menos enquanto não revelar o tortuoso processo que levou ao anagrama de "Rogério Casanova")
Diário (e não me chames amigo, por favor)
Ana de Amsterdam (como não??!! O melhor)
Terapia Metatísica (o prémio póstumo, com um pedido especial de regresso)
A Vida Breve (o esteta mais sacana da blogosfera portuguesa).

[Sérgio Lavos]

29/12/07

O prazer do esquecimento

Leia o seguinte texto:
Sentado no meu cadeirão, lendo (finalmente) Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, vejo o céu ir ganhando as cores do fim do dia, e o tempo a ir atrás, desaparecendo para lá dos telhados cinzentos e das chaminés de Inverno, fumegando. A verdade é que não leio, escrevo. E escrevo achando que é cada vez mais reduzido o tempo que temos para deixar o tempo passar, fluir sentindo cada minuto desaparecer. A leitura é um bom cronómetro do tempo interior. Se deixarmos os sentidos levantar voo, melhor ainda; dá para pensar em tudo o que guardamos para pensar depois, dá para que o corpo se vá infiltrando no pensamento, sentir o cheiro da pele, a pulsação, o movimento interno a construir a imobilidade externa: tudo é imóvel, fora do corpo, o tempo é uma larga extensão que a memória percorre.
Li o livro? Acompanhei a história desse médico inverosímil, o seu percurso para o desaparecimento? Se o li, já desapareceu, confirmo a intuição de Blanchot. A história desapareceu do lugar onde estava: aquela hora em que eu, sentado no cadeirão ao fim da tarde, percorri as páginas em sossego.
Uma acumulação inútil sobrepõe-se a tudo. Não sou um pessimista, mas convivo muito bem com o realismo do desaparecimento. Brinco com isso, escrevo ludicamente sobre o assunto, leio autores que desapareceram ou autores que dedicam as suas histórias ao tema. As estantes enchem-se de livros em que eu nunca irei pegar, nem sequer para ler as primeiras linhas. Se o que leio irá desaparecer, salvo milhares de livros do esquecimento - tudo o que não leio continuará a existir.
Alguém me sopra ao ouvido: as histórias que os livros contam nunca desaparecerão; sobreviverão aos escritores, aos homens. Recuso esta ideia antiga. Um mundo sem homens, onde as histórias insistem em viver, guardadas em bibliotecas borgeanas que ninguém poderá visitar. Imagino o ar de uma biblioteca vazia - o pó rarefeito cobrindo os livros, lentamente, até que se deixe de ver as palavras que estão escritas nas capas; até que desapareça o nome dos autores. A biblioteca, contudo, não está lá. No meu cadeirão metafísico, apenas existo eu e o livro que leio - a biblioteca é um esforço da imaginação, portanto mais material do que algo que tenha uma existência real e eu nunca tenha imaginado.
Anualmente, fazem-se balanços do que já se leu. Arruma-se os livros nas tristes prateleiras da memória. Transforma-se o livro em coisa inanimada, sem vida, um breve lapso de tempo preso num irrecuperável fim de tarde, a que nunca poderemos voltar. Classifica-se, cataloga-se, destrói-se a alma do livro.
Leu o texto precedente? Durará o tempo em que eu o escrevo, recuso que algum papel o condene ao esquecimento.

[Sérgio Lavos]

28/12/07

Ao balanço de 2007 (cinema)

Este ano, há um papel com palavras escritas que correspondem, grosso modo, aos filmes que vi (terão sido mais que em anos anteriores). À frente de cada título, um número. Não há uma ordem. Talvez pudesse ter ordenado no fim, escrever noutro papel, do 1º ao, digamos, 5º. Mas não é necessário.
Suponho então (diz-me a vozinha no fundo da consciência) que este ano há uma lista dos melhores. A questão é simples: o tempo precisa de barreiras; as listas anuais pelo menos fazem-nos esquecer que mais um ano passou, e vimos mais alguns filmes, e lemos mais alguns livros, e ouvimos mais alguma música nova, e nem por isso ficámos mais sábios ou menos descrentes. Acomodamos o marasmo a um calendário imaginário. Que seja. Um blogue é uma forma de prolongar o tédio; a realidade não basta, é necessário aborrecer os outros com os nossos gostos.
Portanto, aqui vai:

1º: INLAND EMPIRE, David Lynch
2º: Death Proof, Quentin Tarantino
3º: Eastern Promises, David Cronenberg
4º: Zodiac, David Fincher
5º: Control, Anton Corbijn

[Sérgio Lavos]

26/12/07

Ao balanço de 2007 (música rock)

E por falar em crítica musical, o álbum Boxer pode ser o equivalente a uma tarde bem passada com os amigos, recordando histórias com mais de 10 anos; os aforismos de Agustina (sem Bessa-Luís) podem ser de um estirpe diferente dos de Matt Berninger (duvido que o rapaz aguentasse um serão inteiro a inalar naftalina num qualquer palacete do Minho, ouvindo histórias antigas de vinhateiros do Douro e escutando as confissões das tias velhas que, imagino, apenas vivem nos livros de Agustina); mas a verdade é que, para "álbum rock" (o que é isso?), não está nada mal. O mais ouvido (de longe) do ano.

Ou então, repousai as espadas e ouvi os LCD Soundsystem, que conseguem provar em Sound of Silver que a reciclagem pode ser mais do que uma moda para os próximos tempos - a diferença entre reciclar e recriar pode estar a um James Murphy de distância.

E depois... há uns gajos que podem não ser tão perfeitos como Johann Sebastian, tão complexos como um Ludwig van, mas enfim, tem muito de ultraviolence, paranóia pós-moderna para usar em conjunto com o derradeiro gadjet que a mãe ofereceu no Natal - ouvir um disco novo de Radiohead é como (agora sem metáfora) regressar ao convívio de antigos amigos - e que, ainda por cima, consegue fazer derreter o gelo que se tinha formado aquando do último Hail to the Thief. No passo, conseguindo revolucionar (um pouco mais) o meio musical, indicando o caminho a seguir pelos músicos do futuro.

Enfim, não sei se isto está de acordo com os parâmetros do bom-gosto. Não sei se falar de pop-rock está dentro das regras do convívio e da civilização. Não sei se o uso de metáforas a declinar para o mau-gosto deve ser autorizado em textos sobre música. Mas que estes foram os três álbuns que me deram mais pica (será sensato, utilizar esta palavra?), foram. Do ano. E das próximas décadas. Portanto, para sempre.

[Sérgio Lavos]

A crítica musical e outros universos

Ó Rui (podia tratá-lo por caro mas não tenho vontade alguma de fingir que sou um moço bem educado), claro que a pop é três acordes, meia bola e força. Por acaso tem azar, porque até cita discos que são razoavelmente complexos, mas enfim, ofereço-lhe essa de bom grado.
Mas quer-me parecer (acho graça quando alguém escreve quer-me parecer; a pobreza da expressão comove-me) que há aqui um pequeno preconceito que passo a explicar (passo a explicar também é das minhas preferidas): a pop é coisa menor que qualquer um pode perceber e/ou executar/criar. Logo, a escrita sobre pop é menor e idem os que sobre ela escrevem. Estou quase tentado a concordar consigo (repare que já lhe atribuí esta ordem de pensamento, mesmo que não seja a sua; perdoe-me o maniqueísmo), assinalando como excepção eu próprio, visto gostar muito de mim.
A partir daí, grosso modo, a gente escreve tudo da mesma forma e somos, vaga e geralmente, uns patetas - ou escrevemos patetices. (Gosto da parte em que dizem que não temos referências. Aprecio sobremaneria quando indivíduos que não me conhecem me reduzem intelectualmente sem saberem se estudei engenharia ou fotografia, se leio Heidegger ou livros de culinária. Não leio Heidegger, claro - acho-o um pateta.)
Ora, não augurando, da parte que me toca, a escrever, em jornais, mais que patetices (pois, grosso modo, essa é condição essencial para ser publicado - um bom texto nunca foi, nunca será publicado num jornal, e qualquer pessoa que tenha estudado, por exemplo, filosofia, sabe isso), acho caricato que, digamos, um texto de Manuel Gusmão não seja considerado uma verborreia inenarrável de referencialidade abusiva exclusivamente centrada em maus poetas e escrita apenas e só para gáudio onanístico de um pequeno salão de medíocres, mas um texto bem escrito sobre uma canção não possa ser algo respeitável. (Eu pessoalmente não quero que seja respeitável; por mim tornava os textos - e o jornal - desrespeitador; mas isso são opções.) Da mesma forma não vejo o mesmo furor em esventrar a prosápia medíocre de um Vasco Correia Guedes, ou o péssimo - péssimo - português da maior parte dos nossos cronistas, que me abstenho de mencionar (doem-me os dedos se premir certa sequência de teclas).
É mais difícil, percebe, porque essa gente (termo que roubo ao bom Correia Guedes, Eça de quinta com amargura no lugar do cérebro) escreve sobre assuntos "respeitáveis". E, meu Deus, se o portuguesinho gosta de respeitabilidade e seriedade. Essa gente sabe (acha o Rui) de CINEMA, essa gente sabe de LITERATURA. Essa gente por vezes, mas só por vezes, até ouve pop, mas quando ouve não cai nessa armadilha dos pobres de a engrandecer ou tratar com respeito. Não, essa gente não cai nessa patetice porque essa gente LÊ (ao contrário destes moços, trabalhadores indiferenceiados resgatados à estiva).
Duvido, por exemplo, que o Rui Manuel ache os seus textos uma patetice, ou pomposos, ou pedantes. Chame-lhe intuição. Eu não lhe noto capacidade para tratar a literatura por tu, mas antes por sim minnha senhora como vai.(E no entanto, consta que a senhora é devassa.) Nada disto o diminui, note-se; apenas que padece do mesmo mal (ou ainda pior) que aponta; não tem, é certo a obrigação de ser claro. Também me parece que dando de barato que a pop é sempre a mesma coisa (como um romance), seria aborrecido ler o mesmo texto, apenas com uma ficha técnica diferente.
Enfim, tropeço na minha (inexistente, como decerto já notou) argumentação.
Quero com isto dizer (outra expressão que merece a minha comoção) que o assunto define o olhar dos pretendentes a intelectuais sobre os textos sobre o assunto. Posso por outro lado (hipótese a considerar) estar ressabiado.
Termino dizendo que não me leve a mal tanto impropério. Nas minhas horas menos problemáticas (tem dias que a gordura no fogão me conduz a um fugaz abismo existencial) gosto de o ler.
Desejo-lhe bons discos, já que do resto não percebo puto(excepto BD, é bom de ver, os moços da pop gostam sempre de BD).
Ouço o disco dos National e saudinha.

João Bonifácio

(Esqueçam o texto do Rui Manuel Amaral. Esqueçam as vezes que já sentiram vontade de escrever um texto com o mesmo sabor a fel a propósito do, sei lá, Manuel Gusmão. Gosto especialmente da referência ao Manuel Gusmão. E também ficava bem, digamos, um Joaquim Manuel Magalhães. Ou assim. E lembrem-se que um texto é apenas composto de palavras. A música não precisa delas - e ainda assim, alguém tem de fazer o trabalho sujo).

[Sérgio Lavos]

22/12/07

Pepe Carvalho

Nos livros de Manuel Vásquez Montálban com Pepe Carvalho, o que mais me cativou não foram as tramas intricadas, os ambientes negros, as mulheres fatais vindas de policiais noir antigos; nem sequer foi a Barcelona que me pareceu tão mais bela que a verdadeira, quando finalmente a visitei, ou tão bela como, mas diferente. Nem a hábil leveza da escrita, como quem se exercita no ofício da guerra com apenas uma caneta como arma (dispenso o uso da pena). O que me deixou, literalmente, a salivar, foram as descrições, fulgurantes, precisas, pomposas, da preparação dos elaborados pratos que o detective cozinha para os seus convidados (Francisco José Viegas aproxima-se, com Jaime Ramos, deste hedonismo desencantado).
Cada refeição começa-se a preparar com a antecedência minuciosa de um gourmet - a escolha dos ingredientes é, evidente, fundamental. A textura, o cheiro, a aparência, o toque, a leveza; e, sobretudo, a confiança nos habituais fornecedores - isto de cozinhar assemelha-se em muito a consumir uma droga; a confiança no dealer é essencial. Depois, as mãos sobre a comida em bruto, a sua dança, a escolha da ordem com que os legumes, peixe, a carne, são cortados e colocados dentro dos tachos. A descrição das lâminas a cortar a polpa dos frutos - o presunto servido antes, os queijos, o vinho. O amor ao detalhe é tão grande que ultrapassa largamente qualquer outra passagem dos romances. Cozinhar é uma volúpia que poucos descobriram - e quem realmente gosta de comer acaba por querer, mais cedo ou mais tarde, controlar todo o processo que leva ao prazer.
Montálban provoca este desejo de comer - a literatura para o estômago de que falava Julien Gracq, no seu sentido mais literal e benigno. Um bon-vivant, esse velho e estafado cliché, terá de necessariamente amar a vida ao ponto de a achar uma desilusão. Um detective mergulhado em caos e corrupção é o derradeiro hedonista - ainda bem que a ficção se aproxima mais da vida mental do escritor do que da realidade que retrata.

[Sérgio Lavos]

20/12/07

Coppola

Esperamos sempre qualquer coisa, a qualquer momento, daqueles que gostamos. Dado que foi adiada, até Março, a estreia em Portugal do novo (sim, NOVO, dez anos depois) filme de Francis Ford Coppola, resta-nos o consolo de irmos lendo sobre a obra, Youth Without Youth.
Vale a pena, a surpresa e o calor podem surgir a cada frase. Na reportagem de hoje, na revista Visão, publicada originalmente na Time, a determinada altura é-nos dito que uma amiga de adolescência ofereceu a Coppola o livro de Kerouac, Pela Estrada Fora. O homem vive. E suscita em nós a inveja. Tudo bem; podíamos, de alguma maneira estranha, conseguir aplacar a inveja por não termos conseguido criar Apocalypse Now ou, vamos lá, o primeiro e o terceiro Padrinhos. Se o conhecêssemos, teríamos de reprimir a vontade de o esmurrar e substituí-la (com dificuldade) por uma sentida vénia - é assim que se deve proceder perante sua Eminência. Mas haver no passado uma enamorada (termo que nunca devia ter caído em desuso) que tem o bom-gosto de oferecer o livro de Kerouac, isso parece-me imperdoável. Inveja, inveja. E que bom sonharmos que aquela miúda de olhos verdes que, por um reflexo caprichoso de sombra, parecia olhar para nós enquanto jogávamos basquetebol no recreio, poderia um dia vencer a timidez (a nossa, claro, a nossa) e dirigir-se-nos portando um exemplar de Agulha no Palheiro nas mãos (a velha edição da Livros de Brasil, evidente). O que me aconteceu de mais parecido com este devaneio, o empréstimo de O Estrangeiro por uma colega loura por quem eu nutria pouco mais do que uma vaga simpatia (se bem que...), descambou em desastre completo. A começar pelo facto de eu achar que o interesse dela era puramente intelectual - essa coisa de debater pontos de vista sobre o livro, discutir ideias, trocar opiniões em vez de fluidos corporais; e a acabar no facto do livro ter desaparecido para sempre num vórtice que se localizava exactamente por trás do móvel encostado à cama onde dormia, um lugar tão inacessível como o é o paraíso para os grandes capitalistas e os raquíticos ignorantes. Nunca tive coragem de confessar o pequeno incidente; e ela nunca teve necessidade de me perguntar pelo livro (era loura, era virgem - só podia -, imagino o rubor que sentia de cada vez que pensava na ideia).
Coppola teve uma mulher que lhe ofereceu o livro de Kerouac e tornou-se no que se tornou. Imaginem o que me teria acontecido se alguma vez aquela morena de olhos verdes tivesse ganho coragem para se aproximar de mim com o livro de Salinger nas mãos.

(Ah, e Coppola tem a filha que tem; há homens que bem poderiam repartir a sorte que lhes calha com o resto de nós.)

[Sérgio Lavos]

Michel Gondry


Há nos videos de Michel Gondry uma vontade de regresso que toca qualquer um agora na casa dos 30, ou prestes a entrar nela. Pode não haver uma identificação completa com os fétiches infantis (nem sempre há paciência para os peluches "qu'iduchos" perseguindo Bjork), mas a verdade é que Gondry consegue mostrar uma criatividade assombrosa na perseguição de uma quimera: um estado de espírito entre sonho e memória de infância (há quem afirme que um e outra não estão assim tão distantes). Nas longas-metragens, o realizador francês conseguiu prolongar o imaginário dos vídeos, consubstanciado na excelente parceria com a imaginação delirante do argumentista Charlie Kaufman, em Eternal Sunshine of the Spotless Mind. Desde a praia de infância até ao mundo visto à escala de uma criança, são várias as imagens marcantes do filme.
As diferenças de escala, a distância entre mundo sonhado e mundo real, a natureza como refúgio das agressões da cidade, as metamorfoses, de criança a adulto, de um objecto noutro, as coreografias de aparência caótica desenhando uma ordem concreta, tudo temas que se reproduzem de video para video. Como neste, um dos meus preferidos, Dead Leaves and the Dirty Ground, dos White Stripes. Ou de como um video pode introduzir uma inovação ao nível da representação de uma ideia cinematográfica. Dois tempos que coincidem, o passado projectado no presente (ou dois presentes existindo simultaneamente), numa solução técnica original que consegue criar uma imagem cristal (duas camadas de tempo sobrepostas) deleuziana. Grande cinema no pequeno écrã: e a música ao nível das imagens.

[Sérgio Lavos]

13/12/07

Um hífen

Talvez o principal problema deste blogue - escusam de encher a caixa de comentários a apontar todos os outros problemas - seja uma mísera marca linguística. Um hífen.
Começou bem, com pinta de blogue decadentista com pretensões a qualquer coisa que nunca se veio a tornar (não explico). Prossegui, seguindo as indicações do blogger - todos os passos, o nome, que não sei já como surgiu mas que me pareceu evidente, o nome que assina, e... o url. Não aceitou à primeira a proposta: que existia um qualquer auto-retrato. A banalidade do título tinha o seu preço. Adiante. Inverti a ordem das coisas. E de algum modo, sempre que tenho de digitar retrato-auto, lembro-me do mecânico bate-chapas onde o meu pai levava o carro - a palavra bate-chapas espichada na parede de cimento da oficina, a tinta a escorrer por ali abaixo para sempre. Há fardos mais pesados.
O problema é mesmo a ortografia. Em tempos, a questão colocou-se de forma muito simples: deveria escrever Auto-Retrato, a forma correcta (como isto é um título, vá lá, uma espécie de título, as duas palavras que compõem o termo começam com maiúsculas) ou Auto-retrato, a grafia adoptada por alguns blogues que linkaram este? Como mudei durante algum tempo, acabei por deixar ficar assim como está, até porque aprecio mais a anglicização do termo, a partir de self-portrait (e que me desculpe o André, principalmente ele, que jogou as suas cartas a favor da primeira versão).
Muito tempo depois, como numa história infantil, tenho diversões versões do nome grafadas pela blogosfera fora. Auto-retrato, Auto-Retrato, simples; mas também retrato-auto ou Retrato-Auto, ou Retrato-auto(o que eu aprecio bastante, tendo a conta a tal história do bate-chapas), auto retrato e Auto retrato e Auto Retrato, todos sem hífen, talvez para poupar a maçada de pensar em qual será a grafia correcta. Mas o meu preferido, porque simplifica (e de que maneira) as coisas, tem de ser o do Rogério Casanova. Ora bem, a sua fantástica ginástica linguística chegou a um hermético O Invisual Grego às Avessas. Confesso que levei tempo (pr'aí... hum... três minutos) a descodificar o anagrama, mas haverá melhor definição do que tem sido feito neste blogue, desde o início?
Talvez fosse boa ideia fazer um acordo ortográfico com todos os blogues que hiperligam o auto-retrato: e que tal mudarem o nome deste blogue, na barra de links, para O Invisual Grego às Avessas?

(É claro que bati, de longe, o meu recorde de auto-linkagem. À consideração da Carla, para a série metabloggers do it better.)

Adenda: devido ao acto caridoso de um comentador anónimo (os meus preferidos), corrigi o nome em cima. Lamentavelmente, já muitos leitores tinham mudado o nome do link para um versão incorrecta do anagrama. Portanto, poderão corrigir para a versão correcta (O Invisual Grego às Avessas), ou não, ou voltar à forma inicial (Auto-retrato), ou não, ou o que quiserem. Não acredito em Deus (e ele, pelo andar da carruagem, também não deve acreditar em mim) nem em direitos de autor. Mas gosto de adendas. Da aliteração. Bonito.

[Sérgio Lavos]

Passado


[Sérgio Lavos]

12/12/07

Uma história

Um dos textos mais imaginativos que já me passaram pelas mãos foi escrito por um colega de escola. A partir do nada.
Tínhamos de escrever sobre qualquer coisa - um ensaio, um conto, um daqueles exercícios um pouco idiotas de escrita criativa que os professores de português são obrigados a fazer de vez em quando. Não me recordo do texto que escrevi (terá sido uma longa e chata digressão sobre o sistema que nos obrigava a fazer a PGA ou um qualquer conto de uma página ao estilo Robert Heinlein, um dos dois, um dos dois, assim tem sido a minha vida). Lembro-me de forma bastante clara da extravagância sobre o nada que esse colega inventou. A professora delirou. (Alguém - algo? - me sopra ao ouvido - "todos os textos são sobre nada" - mando calar a vozinha: "não sabe que isso é um cliché?"). A professora leu o texto alto para a turma (e não falo de crianças, estaria para aí no 10º ano), como bom exemplo da criatividade juvenil. Curioso era o facto de esse colega ser um aluno medíocre, bom de bola (pé esquerdo assassino, marcava cantos directos em jogos dos distritais de Leiria e tinha um toque de bola que fazia lembrar o Balakov, gingar e passar, sempre a vinte à hora). Bom também no capítulo mulheres. Para que queria ele então saber escrever? Estudar? Escrever é para nerd de primeira fila (alto, alto, que nessa altura eu já andava pelas últimas). Que benefício lhe poderia trazer a escrita? Tinha quantas namoradas quisesse, jogava bem à bola, que lhe interessavam os livros? A verdade é que a história que ele inventou foi uma desculpa para a preguiça. Encostado pela obrigação de mostrar algo, naquele momento, naquela aula, inventou, criou. Não é para todos. Aproveitou o aperto? Não sei, não o vejo há mais ou menos 15 anos, e a última vez que tive notícias dele, estava bem na vida, casado e tal, essas coisas a que todos chegam. O seu lampejo foi breve, ele nem deve ter ligado. Ah, e também não se tornou futebolista. Julgo que a carreira se terá perdido entre a preguiça e a vontade de viver encostado à vida. Histórias.
Conclusão? Para quê insistir então, se a felicidade está tão perto?

[Sérgio Lavos]

09/12/07

O mal dos blogues (3)

Escrever para um blogue é condenar um texto ao esquecimento. À partida, todo o texto nasce condenado ao esquecimento, é verdade. E os blogues também apareceram para servirem de depósito para a criatividade de quem os cria, outro nome para a gaveta do passado.
Há duas fases principais no processo de escrita - o impulso inicial, que leva à escrita nem que seja para ser apagada cinco minutos depois, e a vontade posterior de divulgar o que se escreveu - há muito, quase tudo, de ego nesta segunda fase. Os blogues permitem eliminar uma série de problemas: a avaliação por parte do outro, ainda antes da publicação; a reescrita séria e empenhada daquilo que se escreve (a maior parte dos bloggers escreve directamente para ser publicado, sem passar por corrector ortográfico); o arrependimento (apesar da possibilidade de se poder apagar depois). Publicar num blogue elimina os escolhos com que um texto se depara. Mas a verdade é que são esses escolhos que permitem a solução dos problemas do texto. Por isso, o texto publicado em blogue é, à partida, mais fraco do que aquele que chega à fase de impressão. Para além disso, existe uma diferença de esforço entre quem escreve para uma publicação periódica e quem escreve pensando num livro. Uma escala crescente de exigência: blogue - revistas e jornais - livros.
É claro que um mau escritor é-o em qualquer suporte. Daí o lugar-comum que vemos escrito por muitos bloggers - de que existem muitos textos blogosféricos melhores do que muita coisa que se publica em papel. Ora, isso não diz nada acerca de coisa nenhuma; nem sobre os textos virtuais nem sobre a qualidade média da literatura publicada em livro. Mas acaba por ser mais imediato, mais fácil, e portanto menos exigente, a publicação em blogue. Por enquanto.
A evolução natural deste estado de coisas leva a duas situações: o progressivo abandono, por parte do escritor, do suporte livro; a crescente tendência para os conteúdos criativos da Internet serem pagos, seja directamente, pelos donos dos sítios onde o escritor publica, seja indirectamente, através da publicidade que aparece nos blogues. É claro que os puristas irão reclamar - quem está por cá desde o início acha que o diário virtual deve continuar a ser o exercício jaculatório que até agora tem sido. Este modo de pensar não ajuda ao respeito pelo texto: uma rede de blogues onde o leitor tivesse de pagar para aceder aos conteúdos não significa que os blogues que nascem como nódulo de uma rede social desaparecessem. Mas os melhores blogues passariam a ser valorizados - e o trabalho intelectual seria compensado.

(1) e (2)

[Sérgio Lavos]

08/12/07

Ler os outros

Deixei de apreciar a polémica. Nos blogues, é bom de ver. No resto, nem chega a existir (os fogachos ateados por figuras mais ou menos mediáticas não contam).
Que querem, que fale das polémicas de antigamente - a Questão Coimbrã, o manifesto anti-Dantas, as diversas diatribes em que Luiz Pacheco se viu envolvido? A que distância estamos - em estatura, moral ou intelectual, os polemistas de agora são como anões prostrados diante de montanhas.
Polémicas políticas em blogues? Nem sou da velha escola, comecei a escrever há tempo insuficiente tanto para conhecer tudo como para merecer o respeito de quem lê. Os galões, nos blogues como na vida, são ostentados à mínima veleidade de quem se arrisca.
Tenho uma opinião sobre a esterilidade dos textos produzidos? Uma opinião vale o que vale - a opinião do que grita acaba sempre por se sobrepujar à daquele que apenas a murmura. A palavra escrita apenas é lei quando a inscrevem no código civil. Tudo o mais são casualidades do tempo.
Posso ler durante horas textos que conduzem a nada, becos sem saída, retóricos ou infrutíferos, labirintos de figuras de estilo que alojam no centro um gigantesco buraco negro (perdoem-me a contradição cientificamente errada). Horas que poderiam ser aproveitadas para outras frivolidades mais enriquecedoras - o problema é apenas meu, mas a psicose abunda nos blogues. Basta saber que as maiores audiências são atingidas por blogues de pendor ou político ou sexual. A política será o viagra de um país deprimido?
Ler com tempo, acontece muito pouco em blogues. A meia-dúzia de textos diários que se aproveita vale a pena. Mas a mecânica das coisas é cansativa: ler um ecrã certamente não se aproxima da sensação de ter um livro aberto ao artesanato da interpretação.
A humildade, infelizmente, não surge suficientemente cedo na vida. Ler como quem não espera nada, escrever como se apagasse tudo, eis o possível engodo.

[Sérgio Lavos]

06/12/07

Inland Empire DVD

É, neste momento, o dvd mais desejado: INLAND EMPIRE (Atalanta). Disponível a partir de dia 7, este dvd inclui alguns extras para o coleccionador/fanático decorar: "Lynch 2" (30 min); "Pretty as a Picture: The Art of David Lynch" de Toby Keeler (75 min); Rui Pedro Tendinha entrevista o realizador e elenco de "Inland Empire";DVD ROM (Dossier e artigos de imprensa, Fotos.

"Se gostou ou não gostou, é irrelevante, o importante é ter estado aqui" afirma-se no email informativo citando Luís Miguel Oliveira (para o Público). Sublinho o carácter irrelevante do gosto estético perante a reconhecida qualidade artística deste filme: a palavra do crítico vale por todas as opiniões anónimas que tenham sido escritas.

[Susana Viegas]

05/12/07

Eastern Promises

Não me interessa discutir até que ponto Eastern Promises se afasta do resto da obra de David Cronenberg. Não é uma questão, porque toda a obra anterior do canadiano é díspar entre si, apesar dos inevitáveis temas que se repetem.
Cronenberg afirma-o numa entrevista à revista Positif: o que lhe interessa é o corpo. O de Viggo Mortensen, marcado pelas tatuagens das prisões russas e os outros menos despidos mas igualmente marcantes: o recém-nascido, o corpo de Vincent Cassel, reprimindo o desejo em relação a Viggo, os corpos martirizados das prostitutas. Por isso, Cronenberg mostra a violência como um momento de excepção, um momento de ruptura na precariedade absoluta de um corpo. A lâmina na garganta, duas vezes, e a luta corpo-a-corpo na sauna, são singularidades que se inscrevem de modo tão decisivo na carne como as tatuagens que os criminosos ostentam. A violência de uma luta, a dança das lâminas, a coreografia tensa da ameaça - como nos quadros de Francis Bacon inspirados nas fotografias de lutadores de Edward Muybridge. Toda a violência imaginada sobre o corpo tem, por sua vez, uma pulsão erotizante; Bacon percebeu-o, Cronenberg não terá sido inocente ao sublinhar o contexto homoerótico da relação entre Nicolai (Mortensen) e Kirill (Cassel).
Mas a violência do filme não é verosímil. Pode ser realista, no sentido em que o realizador encena a realidade de forma convincente. Mas a violência não é ilustrativa, como o é num docudrama como o recente (e ainda não estreado em Portugal) Tropa de Elite, pretendendo representar uma realidade, o ambiente nas favelas no Rio de Janeiro, fazendo uma tangente ao real, recorrendo aos truques habituais: a câmara aos solavancos, o estilo jornalístico, a caução da verdade com o genérico inicial afirmando que o filme foi baseado numa história verdadeira.
Cronenberg não está interessado em histórias verdadeiras. O seu cinema é um cinema de ideias (sem ser programático). A violência não tem qualquer gratuitidade, pertence ao próprio esquema do filme. Os rituais de purificação das personagens permitem que o espectador perceba o impacto que a violência pode ter sobre o corpo. O realismo de Cronenberg é, portanto, da ordem da imaginação cinematográfica, da fábula; daí a artificialidade dos inserts, planos muito curtos, em close-up, da violência a ter lugar. Como em Eisenstein, a montagem serve para vincar no espectador a excepcionalidade da situação retratada. Michael Haneke, em Caché, recorre precisamente ao mesmo artifício. Em Eastern Promises, a morte do mafioso russo pelo adolescente curdo surge de forma imprevista; o golpe da navalha no pescoço é um golpe na consciência do espectador, transporta-o de imediato para território desconhecido. O choque é brutal, como acontece no filme de Haneke, na cena do suicídio do imigrante argelino: e quem vê é puxado sem remédio para dentro da cena. Ora, a realidade não é assim. Não há inserts no dia-a-dia (e Tropa de Elite não tem efeitos deste tipo). Filmes assim conseguem criar uma impressão de realidade necessariamente distante da realidade de onde partem.

[Sérgio Lavos]

03/12/07

Livros

Da primeira vez a que assisti a uma queima de livros, não consegui salvar nenhum exemplar para a minha biblioteca pessoal. As capas já tinham sido rasgadas, milhares de corações amontoavam-se a um canto do armazém, esperando pela sua vez, aguardando que os atirassem para a pira infernal. Curioso, as palavras que outros produziram dão uma bela fogueira intelectual, fumo negro e tudo. Nas mãos dos funcionários diligentes, as páginas de Shelley, Shakespeare, Milton ou Henry James, ganham um valor combustível nada desprezável. Tudo arde - Hitler provou-o a seu tempo. Há aquela história do escritor a morrer de frio, que utiliza o manuscrito de 900 páginas do seu único romance para atear o fogo que o mantém vivo - quem disse que a literatura não pode salvar o mundo?
Os livros que eu vi morrer, sem possibilidade de intervenção, eram ingleses. Restos da editora Wordsworth que não tinham sido vendidos, clássicos em fase acelerada de desaparecimento. A editora faliu, mas por Inglaterra ainda se encontram à venda em muitas livrarias. Na altura, custavam, salvo erro, 500 escudos, duas libras. Não fiquei com nenhum exemplar, queria mais do que o miolo sem capa de um livro - não julgai o livro pela capa, é verdade, mas um livro a que falta uma das suas partes é um livro coxo, uma mulher sem atractivos físicos que a evidenciem do resto do género. Com o papel que ardia, morriam as minhas hipóteses de ler uma porção muito pequena daquela parcela de livros que Almada Negreiros dizia nos caber em vida. E vale sempre a pena acharmos que ainda vamos encontrar o livro que nos vai mudar a vida; começamos a ler cativos dessa fé.
Em Inglaterra, está a ser construído o maior depósito de livros não lidos no mundo; todos os livros esquecidos, assim como jornais e revistas, num só espaço, selado para todo o sempre. Em A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Záfon, há um equivalente ficcional a este espaço. O cemitério dos livros esquecidos, edições inteiras de inutilidades ou restos de preciosidades descatalogadas pelo gosto dos leitores. Entre destruir livros e armazená-los num não-lugar para todo o sempre, uma linha que se quebra. A notícia do Guardian é exaustiva: milhares de quilómetros no meio do nada, acumulando o nada que o resto do mundo não quis ler. A dimensão material dos objectos armazenados e a enormidade do conhecimento que o objecto livro guarda, somadas, criam uma espécie de buraco negro da sabedoria humana. Conhecemos bibliotecas assim - mas estas são regularmente ressuscitadas por quem consulta os tomos arquivados. Mas o armazém estará inacessível ao público, serve apenas de depósito para as sobras de livros, jornais e revistas da Biblioteca Nacional Britânica, uma das maiores do mundo. O edifício tem uma escala gigantesca - comparável à grandeza do que lá vai ser guardado. Túmulos para livros, como é comentado neste texto. Tanta palavra, para nada.

(Obrigado ao Armando pela dica)

[Sérgio Lavos]

Jigsaw falling into place

01/12/07

A expiação

Como introdução a Paranoid Park de Gus Van Sant, fica em escuta na barra lateral a música que Nino Rota compôs para Amarcord. Pode parecer um anacronismo forçado, mas não é. É absolutamente inesperada esta homenagem ao cinema europeu mas, tendo em conta as decisões estéticas que percorrem os filmes de Van Sant, não será um anacronismo. Nino Rota compôs bandas sonoras incríveis, foi um artista que soube acompanhar o nível de outros artistas como Fellini, Zeffirelli ou Coppola. Ao onirismo de Rota, Gus Van Sant junta ainda Elliot Smith e as paisagens sonoras de Hildegard Westerkamp (que surgia, por exemplo, com os sinos de igreja de Last Days) e de Ethan Rose. Quanto à interpretação de Gabe Nevins (Alex), pouco mais haverá a acrescentar tendo em conta a unanimidade de opiniões: ele é perfeito como adolescente em expiação. Paranoid Park poderá ser a continuação temática de Elephant, a adolescência e o contacto irreversível com a morte de alguém, a ausência dos adultos nas decisões fundamentais. Como lidar com a morte de alguém quando se conhece tão pouco o outro, quando se procura viver tudo intensamente? Alex desliga-se do que está mais próximo, a culpa da morte de outra pessoa (ainda que não tenha sido voluntária), para se preocupar com o que nunca o poderá atingir, a fome em África ou a guerra no Iraque. A culpa não se exterioriza, não está fora de si nem do seu país. A culpa fica nele quando decide não contar a ninguém. Lembrando directamente Dostoievski ou Kierkegaard, é como um espinho cravado com o qual terá de viver, terá de levar para onde quer que vá. Ainda que a culpa o dilacere, pensa na fome em África e continua a sua vida interrompida de adolescente.

[Susana Viegas]