31/10/08

Em boa companhia




Não sou sentimental e muito menos americano, mas senti uma pontinha de emoção ao ver a lista de apoiantes públicos de Barack Obama. De atentar em várias coisas: a lista é incomparavelmente mais extensa do que a de McCain; a ausência de grandes nomes em todas as áreas artísticas do lado de McCain, contrastando com a esmagadora presença de actores e escritores apoiantes de Obama; a quase inexistência de desportistas que apoiem McCain, mostrando duas coisas - a origem social desta classe e, sobretudo, a componente étnica da candidatura de Obama - quase todos os grandes do desporto são afro-americanos. E, último mas não menos importante, a quantidade de mulheres bonitas que dele gostam (em oposição aos true american men destacados por Ricardo Gross, no campo de McCain): Jessica Alba, Halle Berry, Jennifer Aniston, Patricia Arquette, Kirsten Dunst, Heather Graham, Anne Hathaway, etc., etc., etc., e Angelina Jolie e, por último, Scarlett Johansson.
Temos homem? Habemos...

[Sérgio Lavos]

Os dedos

Os dedos são de Lady Chatterley, longe do seu amante, tocando uma pele que ela espera que ainda possa ser tão bela como era antes. As mulheres sofrem a passagem do tempo da maneira mais séria possível: o corpo é o que as distingue, e a beleza é a manifestação de um espírito natural indomável. 
O filme de Pascale Ferran é feminino, feminino, e apenas poderia ter sido criado por uma mulher; a atenção ao pormenor, o corpo usufruido em vislumbres, a intimidade que surge dos grandes planos sobre as coisas que passam despercebidas ao olhar masculino, a atenção dada à linguagem não-verbal, olhos boca, rosto, mãos, a distensão do tempo, a demora do acto sexual, como uma seta apontada ao ponto mais frágil de um homem. Os ruídos que vêm da Natureza, os pássaros, o vento, as folhas restolhando, a luz natural, de noite e de dia; a história de um adultério, de um ponto de vista que a maioria dos homens recusa e quase todas as mulheres querem recusar. 
Afirmar que o filme apenas poderia ter sido realizado por uma mulher não é uma forma de menorização, nem da obra nem das capacidades femininas; é um sublinhar de diferenças, e apenas isto. As mulheres terão plenos direitos quando os homens conseguirem entender perfeitamente a sublimação do seu desejo. Mas então, quando cair o véu, valerá a pena a sedução?

[Sérgio Lavos]

29/10/08

Antes que o Diabo saiba


Quem por gosto corre, não cansa, e deve ser a primeira vez que uso um provérbio no blogue, teria de ser este, porque resume essencialmente a actividade bloguística.
Não vou repisar o assunto - não agora. Lembrei-me da frase a propósito da vontade de escrever sobre determinado tema aqui, na oportuna altura. O cinema é tratado neste blogue desse modo - apenas escrevo sobre o que me apetece, nunca sobre tudo o que vejo, ainda menos sobre o que não gosto. E muitas vezes, não escrevo sobre o que gosto. Vem isto a propósito de uma conversa com o Pedro Sales, pensando num dos melhores filmes deste ano, Antes que o Diabo saiba que morreste, a que votei o meu desprezo ou desatenção. Não foi desatenção, mas a verdade é que o filme saciou-me, e bastou isso. Acontece-me muito; filmes que servem numa bandeja tudo bem composto, evitando que no fim sinta a vontade de petiscar noutro prato. Explicando: apetece-me quase sempre falar de filmes que pensem o cinema, filmes que ofereçam ao espectador a oportunidade de regressar às imagens. Por vezes, saímos da sala de cabeça vazia, e parece que nenhuma corda foi tangida, mas quando estamos à noite em casa, olhando o vazio ou a televisão ligada (o que é quase o mesmo), as imagens, insidiosas, obrigam-nos a tentar entender, gostar de outra maneira, empurrando a mão para o papel ou para o processador de texto mais próximo. 
O filme de Sidney Lumet, exercício estilístico, falsamente experimental, que se apoia no espantoso trabalho dos actores (à boa maneira dos anos 70), termina e a emoção acumulada esvazia-se, deixando pouco espaço ao pós-operatório, digamos; a estrutura é adequada, mas evidente, as histórias evoluem em ritmo de tragédia familiar bem doseada, pathos incluído (a cena de Seymour Hoffman destruindo a intimidade perdida do casal é o coração da obra), e a amoralidade moral que Lumet nos oferece preenche a necessidade básica de qualquer espectador: sair da sala de cinema sentindo-se um ser humano melhor ou mais inteligente. Mas, a meu ver, esgota-se aí.
E pensar depois na razão do esquecimento levou-me a compreender de modo mais completo o filme: a escrita serve, sobretudo, para isto: entender o mundo.

[Sérgio Lavos]

Muro


[Sérgio Lavos]

27/10/08

O ponto de vista


O filme começa assim: um assassino deambulando pelas ruas procura uma vítima - Godard falava num arma e uma mulher para fazer um filme; uma câmara encontra a sua presa, e não é a prostituta que grita no derradeiro momento - é o espectador, que sem dar por isso é colocado no lugar do assassino.
Peeping Tom, na aparência, é um simples catálogo de horrores, ensaio psicanalítico sobre a loucura. Mas, ao contrário de Psycho, de Hitchcock, não há explicação que distancie o louco do espectador. A amoralidade do filme não está nos actos do assassino, mas na simpatia que sentimos por ele - e nisto, o filme de Powell diferencia-se de Laranja Mecânica, com o qual por vezes é comparado. As origens da esquizofrenia - as experiências do pai, cientista - fundamentam a vontade de matar, e desculpam-no aos nossos olhos. O ponto de vista subjectivo é quase sempre o nosso; e a única personagem moral é uma mulher cega, que não morre porque não pode olhar de frente a morte. Nós, que somos voyeuristas, estamos irremediavelmente condenados.
Abençoados sejamos.

[Sérgio Lavos]

24/10/08

To peep

A primeira imagem de Peeping Tom, de Michael Powell, é esta; um olho que nos observa, azul, de mulher, a pele de mulher marcada por sardas - as ruivas, diáfanas, multiplicam-se no filme, confundindo-se e confundindo, um olho que nunca saberemos de quem é. O olho, o buraco, e a lâmina escondida pelo tripé da câmara; o espelho reflectindo o medo da vítima. 
É extraordinário como este filme trouxe a desgraça ao realizador, depois de uma carreira quase gloriosa. Recuperado nos anos 80 por Martin Scorcese, estreou apenas nessa década nos E.U.A. A razão da passagem aos subterrâneos da história do cinema foi, imagine-se, a crítica. Arrasadoras, "inacreditáveis", nas palavras de Scorcese, unânimes, ao que parece, na altura em que estreou em Inglaterra. Na sua autobiografia, Powell cita escrupulosamente os seus detractores e todo o moralismo que eles destilaram na altura: acusado de ser um filme escandaloso, pornográfico, demente, de tudo e mais alguma coisa, terá sido esta uma rara ocasião de testemunhar o delírio total da crítica, incapaz de separar ética e estética, horrorizada com a simpatia que Powell aparenta ter pelo assassino voyeurista interpretado pelo, até aí, anódino actor Karlheinz Böhm (o imperador Francisco José da série de filmes sobre a imperatriz Sissi, com Romy Schneider).
A atitude de Powell, depois de o filme ter sido revalorizado por uma nova geração de realizadores, foi um acto de fria vingança sobre os pobres e esquecidos críticos que arruinaram a sua carreira. Mas a história repete-se; quantos críticos de agora terão noção do real valor das suas palavras? Das suas relativas opiniões?

[Sérgio Lavos]

22/10/08

A banheira

Como uma banheira de porcelana branca
Quando a água quente arrefece e se evapora,
Assim é o lento desvanecer da nossa tempestuosa paixão,
Ó minha mui louvada mas-não-especialmente-satisfatória senhora.

Ezra Pound

versão de

[Sérgio Lavos]

16/10/08

A Faca Corta o Fogo

Por vezes, basta um juízo de valor para espoletar as mais inopinadas razões. Coisas simples, sem importância, vagas opiniões. Foi isso que sucedeu com o meu texto sobre o livro de Herberto Helder, e sinceramente talvez não mereça a atenção que terá tido. Para que se prove este facto, posso dizer que cheguei a começar um texto mais desenvolvido sobre o tema, a que decidi atribuir mais sensato destino: o desaparecimento.

Mas, as coisas simples: como o Henrique Fialho, comecei a gostar de Herberto Helder muito cedo. A sua obra poética, o tijolo comprado na livraria Portugal, no Chiado (lembrar-me do lugar e da circunstância em que comprei a Poesia Toda esclarece sobre a importância que a obra teve em mim), formou não só muito do meu gosto posterior, mas também a escrita; e, principalmente, motivou-me para a escrita (com consequências mais ou menos nefastas). Cada geração terá os seus heróis; a minha é herdeira sobretudo de Al Berto, primeiro, e depois de Herberto Helder. Bastava ler o suplemento DN Jovem nos anos 90 para se perceber isso: as epígrafes repetiam-se de número para número, e eram sempre os mesmos nomes, estes nomes, e também Yeats, Hölderlin, Novalis e o ocasional Nietzsche. Será esta a família de poetas que se dedicam a um registo que João Camilo, simpaticamente, apelida de “porque não te calas?”. A poesia do “absoluto”, e não do absoluto metafísico, antes egocêntrico, a poesia que queima o terreno em redor, (e Herberto, no fim, também nos "deixa sem nada"; simplesmente, o caminho tomado é outro) afirmando-se de forma transcendental não apenas em relação à realidade, mas sobretudo, e no caso que nos interessa, na sua relação com a obra de outros poetas.

O facto de, enquanto leitor, admirar a poesia de Herberto Helder, não evita que a leitura da obra seja feita de modo crítico. O que, no caso de Herberto, é fácil: o trabalho de desbaste que ele tem levado a cabo na sua produção poética tem limpo de todo o joio o tal tijolo que eu, há quinze anos, comprei na livraria Portugal, seria uma bela tarde de Primavera.

Ora, julgo que existe uma certa confusão entre ética e estética, principalmente no texto do Henrique: que o novo livro de Herberto seja tratado como “acontecimento” - no sentido mediático do termo: fenómeno de curta duração empolado por uma corrente de opinião dominante na imprensa – não deve obstar a que exista uma leitura crítica do mesmo. E parece-me que recusar, simplesmente, o burburinho, é um erro, porque Herberto, quer se queira ou não, não é propriamente uma Margarida Rebelo Pinto. Há inéditos de um poeta importantíssimo da segunda metade do século XX a serem publicados, muitos anos depois dos últimos terem saído. Não é importante? Não são importantes, os inéditos? Deixemo-nos ficar por aqui, se é essa a discussão. Não gosto, porque sim, não é razão. Eu poderia deixar aqui as razões pelas quais gosto da poesia de Herberto, mas esse texto, como afirmei ao início, não será publicado. No limite, claro, é uma questão de gosto. O problema é a não-crítica que se tem produzido a propósito de A Faca Não Corta o Fogo, e desta situação são culpados não só os que recusam a predominância de Herberto na poesia portuguesa actual, como também, e principalmente, os admiradores que escrevem para jornais e não quiseram, ou não puderam, enfrentar de forma séria a trabalho crítico a que se dedicam. Daquilo que li, apenas o texto de António Guerreiro, no Expresso, se destaca positivamente. Que não há risco nos suplementos literários dos jornais portugueses, estamos cansados de saber, mas insisto: por que razão é que o Ipsilon, por exemplo, no lugar de ter entregue a recensão a Manuel Gusmão, que, enquanto poeta, claramente pertence à mesma família de Herberto, não o fez a Pedro Mexia, denodadamente distante do autor? E Manuel de Freitas, que, apesar de ter escrito um ensaio sobre o poeta, também se encontra na margem oposta àquela onde Herberto se coloca, não poderia também ele ter escrito uma recensão para o Expresso? O não-criticismo português é assim: as escolhas feitas são sempre as mais fáceis, principalmente no caso das vacas sagradas da cultura portuguesa. Mas até uma vaca sagrada trabalha melhor se for picada, e não me parece que a diversidade crítica seja um aspecto que prejudique a obra criada – já o ego do escritor, não ponho a mão no fogo (sem faca); mas o respeito que uma obra deve merecer bem pode dispensar o uso de paninhos quentes no tratamento das divindades da literatura.

Esta fraqueza da crítica leva a que os aspectos que estabelecem a diferença em relação à anterior produção poética mal tenham sido aflorados nas críticas ao livro. Porque, parece-me, há de facto mudanças, desvios, transgressões, transformações. O hermetismo, palavrão que tantas vezes se usa a propósito de tudo e de nada na poesia de Herberto, deixou de ser uma intenção, um motivo. Nota-se uma respiração diferente, uma abertura, que se evidencia quer no campo lexical, quer no semântico. Há brincadeiras, remissões para a realidade quotidiana, alusões, ensaios num registo mais vernacular, menos “elevado”, que têm de ser considerados. Qual a razão, o que levou ao movimento, quando o mais expectável seria a permanência? É que, lendo a maioria das recensões que foram publicadas, até parece que nada se acrescenta ao universo temático e formal neste novo livro. O tal endeusamento em vida de um escritor, que prejudica a interpretação crítica da obra.

A leitura que João Camilo faz do poema que eu publiquei é correcta, mas não completa. Mas o texto dele levanta questões mais importantes, a que responderei, no seu devido tempo.

[Sérgio Lavos]

11/10/08

Sigur Rós/Svefn-g-englar



Agora que a Islândia é ameaçada pela bancarrota e o Inverno se aproxima - a chuva voltou, e a boa disposição matinal com ela - será tempo de regressar aos Sigur Rós, ao fabuloso Aegetis Byrjun, o primeiro álbum. 
É melhor não tentar pronunciar o nome da música, "Svefn-g-englar"; cantarolar também será complicado. A música destes islandeses é para se ouvir deitado na cama, enquanto a vida bate nas persianas corridas. Percorrer paisagens desconhecidas dentro de quatro paredes, permitir que a música flua como a água desabando lá fora. 
Difícil é não cair no lugar comum quando se escreve sobre Sigur Rós - culpado, confesso. Extraordinariamente, o som que a banda produz é tudo menos regular, banal, quotidiano. Assim como os vídeos, nem que seja pela mística paisagem da ilha, pano de fundo ideal para devaneios poéticos e outras fraquezas - basta apontar a câmara às colinas de basalto, à turfa cinzenta, à erva que desponta nas encostas dos vulcões adormecidos. Mas este vídeo, dirigido por August Jacobsson, em colaboração com os próprios elementos da banda, vai mais longe, rasando a fronteira entre beleza pura e o puro mau gosto. A utilização de uma companhia de teatro composta por actores com Síndrome de Down poderia ser arriscada, pelo oportunismo ou coisa pior, mas o resultado final é comovente, pelo menos para gente que tem a corda da sensibilidade bem afinada.
Chuva calma, lá fora. A tempestade acabou.

[Sérgio Lavos]

10/10/08

MEC

Também eu deixo um link para a entrevista a Miguel Esteves Cardoso. E por volta do minuto 23, a grande razão para isto tudo.

[Sérgio Lavos]

Negar três vezes

Sem fôlego. A poesia de Herberto Helder deixa o leitor sem fôlego, extasiado, exaurido. Por isso, é difícil para quem escreve escrever depois de Herberto. Por isso, quem insiste na poesia ou admira e imita, fracamente, tristemente, ou foge à influência e recusa, odeia, desdenha. Terão sido poucos, os que têm escapado a esta dicotomia forçada: António Franco Alexandre, Luís Miguel Nava e Joaquim Manuel Magalhães. No caso deste último, a ruptura terá sido dolorosa; quem lê os ensaios de Magalhães percebe o deslumbre que a poesia de Herberto continuou a provocar nele. Mas a partida tinha de acontecer. Os descendentes poéticos perceberam mal  a atitude de Joaquim Manuel Magalhães; aqueles que tresleram o seu verso do "regresso ao real" afirmam, sem pudor, que a poesia de Herberto não interessa. Interessa, e muito, e ninguém que afirme gostar de ler poesia poderá recusar a intensidade dos seus versos. Um poema de Herberto é, e peço ajuda a uma metáfora, um buraco negro, resplandecente, breve, destruindo toda a matéria em volta. A matéria que é engolida reclama, mas inutilmente. E, regressando ao real, é preciso ler Herberto para entender o que o mundo não é. 

[Sérgio Lavos]

09/10/08

O Nobel

Parece que me enganei e afinal os senhores do Nobel sempre lêem autores franceses. Deve ser por razões de simpatia pelos "humanistas". Mas Le Clézio? Não é ele um iconoclasta? Ou a rotatividade entre línguas e nacionalidades é mais importante do que a chatice do subjectivo critério do gosto?
(E mais importante: por que razão hoje o Correio da Manhã chamou à capa Lobo Antunes, a (des)propósito do Nobel? Para que serve um escritor num tablóide? Para ser tristemente xingado?)

[Sérgio Lavos]

08/10/08

Criatura nº 2


O segundo número da revista Criatura já está à venda. É favor clicar no link para saber onde se pode encontrar.

[Sérgio Lavos]

A Faca Não Corta o Fogo


(...) e escrever poemas cheios de honestidades várias e pequenas digitações gramaticais,
com piscadelas de olho ao «real quotidiano»,
aqui o autor diz: desculpe, sr. dr., mas:
merda!, 1971 - e agora,
mais de trinta anos na cabeça e no mundo,
e não,
não um dr. mas mil drs. de um só reino,
e não se tem paciência para mandar tantas vezes à merda,
oh afastem de mim o reino,
afastem-nos a eles todos,
atirem-lhes aos focinhos o que puderem dela,
sim até se acabar a mirífica montanha,
ó stôr não me foda com essa de história literária,
o stôr passou-se da puta da mona,
a terra extravaza do real feito à imagem da merda,
e então vou-me embora,
quer dizer que falo para outras pessoas,
falo em nome de outra ferida, outra
dor, outra interpretação do mundo, outro amor do mundo,
outro tremor,
se alguém puder tocar em alguém oh sim há-de encontrar alguém
em quem toque,
dedos atentos atados à cabeça,
luz,
um punhado de luz,
cada lenço que se ata a própria seda do lenço o desata,
a luz que se desata,
aí é que se ouve a gramática cantada, imagine-se, cantada para sempre sem se ver a quem,
baixo ressoando,
alto ressoando,
mexendo os dedos nas costuras de sangue entre as placas do cabelo rude,
rútilo cabelo e o sangue que suporta tanta rutilação, tanta
beltà, beauty, que beleza! diz-se, fique
aí onde está dr. porque para si já se reservou
um quilo, uma tonelada, desculpe,
estou com pressa,
alguém lá fora dança na floresta devorada,
alguém primeiro escuta depois canta através da floresta devorada,
desculpe dr. mas já desapareci como quem se abisma
num espaço de hélio e labaredas,
eu próprio atravesso o incêndio imitando uma floresta,
fui-me embora pela floresta infravermelha fora,
não estou para essas merdas floresta vermelha fora

(Inédito do novo livro livro de Herberto Helder, A Faca Não Corta o Fogo - Súmula & Inédita, edição Assírio & Alvim - e o que dizer do regresso por outro caminho?)

[Sérgio Lavos]

Hipertexto

A mansa admiração que o blogue de Saramago provocou na blogosfera parece que se diluiu rapidamente; não há troca de links, remissões para textos, polémica bravia - não é o blogue notícia, apenas a decisão do escritor. O que faz um homem que nada tem a provar - o mínimo cliché que se poderá ensaiar sobre Saramago é este - aderir a uma nova linguagem, tão distante daquilo que lhe conhecemos? E o que, na verdade, dele conhecemos? Os romances não é uma resposta possível. Os diários, os cadernos de Lanzarote, andarão mais perto de uma possibilidade.
Lembro-me de que na altura em que eles foram publicados, correu alguma tinta e turvou-se alguma água a propósito de nada; que os diários não passavam de um assomo de vaidade pública, e por isso, para a mentalidade portuguesa, dispensável; que a corriqueira vida do escritor - as viagens, os prémios, as consagrações - pouco interesse tinham; e, sobretudo, que por baixo da pátina dos dias do escritor, pouco confessionalismo havia: os diários eram uma fraude literária, no sentido em que eram apenas uma conta-corrente dos compromissos, e careciam de autenticidade. Por outras palavras, eram parcos em sangue e lágrimas, vinganças e traições. 
Mas claro, apenas os diários póstumos são verdadeiramente interessantes, nem que seja pela natureza dos mesmos: o autor morto é um saco de pancada, e todas as especulações e mirabolâncias serão possíveis; o autor, lamentamos, encontra-se ausente para todo o sempre.
Enquanto Pedro Mexia vai publicando o seu prévio diário póstumo (a ironia das suas intenções é desarmante), Saramago arrisca um registo diferente, inclusive dos seus diários antes publicados em livro. Textos longos, provavelmente recuperados da gaveta, meditações, memórias. Limpando estes textos do estilo habitual da ficção: textos limpos e corridos, saborosamente evocando (mais do que nunca) Padre António Vieira.
Escolhas; ou de como a literatura não existe apenas nos livros.

[Sérgio Lavos]

06/10/08

Cinquenta por cento de certeza

(É bem provável que ontem tenha ouvido a melhor canção de sempre dos Oasis, mas ainda não confirmei - é do último álbum, "Dig Out Your Soul" e apenas vi o vídeo, talvez de seguida pesquise por aí, e a coloque a tocar ali do lado direito).
Mas a verdade é que sempre pertenci à facção Blur. Nos últimos anos, cheguei à conclusão que a melhor banda da vaga britpop dos anos 90 (para mim, há apenas esta) são os Pulp. 
(A preguiça dos manos Galagher, a sua tendência irritante para copiar os acordes mais conhecidos dos Beatles (e não os melhores), junto com a sua insuportável arrogância, leva-me a dizer, sem rodeios que, por exemplo, a Sheryl Crow - sim, é essa - que estou a ouvir agora naquela "... trá-lá-lá-lá... if it makes you happy... trá-lá-lá..." é uma canção muito mais interessante do que "Sally Can Wait", que tocou antes).
Peguei num CD ao acaso que dizia Brit Awards 97, e cinquenta por cento do que lá está não presta; mas será melhor do que uma colectânea que fosse lançada agora? Estas coisas são importantes - uma dieta de jornais musicais ingleses deformou-me o espírito e ainda agora não consigo respeitar da mesma maneira uma banda pop americana e uma banda pop inglesa (mas a Britpop foi-se, como se nunca tivesse existido).
E agora toca "Mile End" (incluído na banda-sonora de Trainspotting), dos Pulp. Um mimo, uma brincadeira, um doce para gente grande, com sintetizadores que sobraram dos anos 80, uma guitarra vagamente country e um fiozinho de melodia beatliana, mas da boa, daqueles acordes que os Oasis nunca ouviram como deve de ser. E a inultrapassável misoginia tótó de Jarvis Cocker. 
Boys will be boys.

[Sérgio Lavos]

05/10/08

Björk/All is Full of Love



É impossível analisar a música de Björk (quando escrevo analisar, penso, evidente, em ouvir e sentir) sem ter em mente uma série de imagens que traduzem de forma fiel o espírito da música. A frieza maquinal como via de uma intensidade material, o erotismo panteísta, a confluência entre urbe e campo, entre o sentir da vida moderna e a nostalgia da natureza perdida. Tem sido assim, desde "Human Behaviour" (realizado por Michel Gondry) até à estranha e problemática colaboração da artista com o puritano Lars von Trier, em Dancer in the Dark (retomando o título de uma música de David Bowie). 

As imagens, criadas por outros - sobretudo o mencionado Gondry e Spike Jonze - contribuiram, em grande medida, para a criação de um universo "bjorkiano". Atingir este patamar - a criação de um termo que defina um estado de espírito - é um feito de que muito poucos cineastas, vivos ou mortos, se poderão orgulhar; e Björk, sendo "apenas" criadora de música, consegui-o. Encontrar realizadores que conseguem traduzir em imagens um universo pessoalíssimo é, por isso, a maior qualidade de Björk. Pode haver quem se irrite profundamente com os tiques de diva, as tolices de criança por crescer, os ambientes infantilóides e fofinhos dos videos (os gatinhos de "Triumph of a Heart, dirigido por Jonze, devem ser um cúmulo qualquer neste campo), mas a verdade é que é inegável a coerência e, sobretudo, a presença de um elemento teórico em toda a criação imagética que envolve a produção musical da cantora islandesa.

Mas o melhor video de Björk acaba por ser aquele que recentemente foi eleito pelos espectadores da MTV 2 como o melhor de sempre, e pouco se poderá dizer para contrariar esta escolha. O terceiro mago dos clips musicais, Chris Cunnigham, assina esta maravilha do cinema contemporâneo, cunhando uma marca comparável, em certa medida e sem exagerar, a Matrix, dos irmãos Wachowski. "All is Full of Love" é a história de amor dos nossos tempos: fria e reflexiva, comovente e, acima de tudo, impossível: duas formas femininas, máquinas na linha de montagem, que simulam os gestos humanos do amor - apenas assim ele pode ser definido, pela imitação do movimento. O campo teórico preenche-se de possibilidades, mas nem por isso a música deixa de ser essencial na definição da teoria. A electrónica de Björk, contaminada por simulacros de instrumentos tradicionais, reclama uma emotividade alienígena que chega a ser calorosa - a contradição que espelha os caminhos que iremos escolher no futuro.

[Sérgio Lavos]

04/10/08

O que é um leitor?

A pergunta que não consegui fazer à estranha que hoje me deixou desconsertado quando me reconheceu, não me conhecendo:

- E também tem blogue?

(Respostas para o mail na barra ao lado).

[Sérgio Lavos]

03/10/08

O umbigo dos outros


Depois de um dos membros da Academia Sueca que atribui o Nobel da Literatura, Horace Engdahl, ter vindo a público referir-se à suposta menoridade da literatura norte-americana (ou, mais concretamente, estado-unidense), não se vislumbram hipóteses de prémio para Don DeLillo – repare-se, falo em DeLillo e não em Philip Roth, embora Thomas Pynchon também pudesse ser nomeado como próximo não-nobel americano.

Ora, eu achei piada às vistas curtas do senhor sueco, não por que não tenha razão – não tem – mas porque li, logo de seguida, uma ou outra indignação de admiradores de Roth e/ou pró-americanos empedernidos que disparam ao primeiro farejado odor de anti-americanismo. As vistas curtas do sr. Engdahl são prova de uma ou duas coisas, portanto: de que existe ideologia por trás das intenções do júri, se não sempre, muitas vezes; e, principalmente, que os membros se dão ao trabalho de realmente ler milhares de páginas produzidas por autores que não escrevem em inglês (duvido que leiam autores franceses, duvido até que eles não acreditem que a França terminou enquanto país quando Marguerite Yourcenar – que não recebeu o Nobel – morreu). Vamos lá ser sérios: partindo do princípio de que o Nobel é, de facto, o prémio mais importante que um escritor pode receber (e de que recebê-lo é essencial, para a obra ou para o autor), quantos de nós poderão dizer que este ou aquele escritor merece o prémio, em detrimento de outro? Porque a vida de um leitor, caros amigos, é uma vida falhada, em perda; por cada novo escritor que conhecemos (ainda que sejam largas dezenas por ano), há cem de que nunca iremos ouvir falar, seja pela inexistência de traduções em qualquer língua que entendamos, seja porque sim, porque escolhemos. São coisas óbvias, eu sei, mas a humildade impede-me de não as dizer de quando em vez. Queremos falar de gosto? Não me interessa, declaro que a subjectividade não me assusta. Mas antes que embarque na barcaça romba da retórica estéril, deixem-me que pegue num excerto (é sempre bom pegar num excerto) do tipo que escreve sobre literatura mais ideologicamente motivado que eu conheço (com o Alexandre Soares Silva muito perto, mordendo os calcanhares): João Pereira Coutinho, pela mão do Pedro Vieira: “e, segundo, porque o Nobel premeia escritores humanistas, ou seja, optimistas, que oferecem à academia sueca uma visão inspiradora, e muitas vezes sentimental, da natureza humana.” Não sei de que escritores fala ele, mas espero que não seja de Saramago, Dario Fo, Harold Pinter ou Joseph Brodski, caso contrário começo a duvidar do, até agora, impecável gosto do cronista, o que seria uma chatice, já que politicamente nunca me servirá uma chícara de chá que seja. Tudo para justificar o horror de não escolher o Roth, por ser americano. Mas Coutinho terá lido tudo o que os membros da Academia leram, todos os escritores humanistas e politicamente empenhados que concorrem entre eles para o premiozinho de uma vida? É esse o meu ponto.

A verdade é que a literatura dos E.U.A. é, quase sempre, “provinciana” e “fechada sobre si própria”. O problema é que o umbigo dos E.U.A. é de supremo interesse universal, e o olhar do mundo inteiro está definitivamente focado nele (ninguém sabia?); julgo que a isto se chama (com todo o despeito que merece) globalização cultural, mas posso estar errado. Toda a grande literatura americana é, antes de mais, um elogio do modo americano de viver; o grande romance americano, de Melville a Pynchon, de Thomas Wolfe a Philip Roth, tem características comuns que reflectem o espírito de uma nação e de um povo: os valores do individualismo, da demanda épica, da transcendência das origens, do combate a qualquer adversidade, a qualquer custo. E, lamento, João Pereira Coutinho, o principal impulso que conduz todos estes heróis americanos (Ahab, Eugene Gant, Sal Paradise, Nathan Zuckerman) é o humanismo. 

Nem Coutinho nem Engdahl. Os valores americanos são universais, as obsessões culturais que aparecem exaustivamente fetichizadas na literatura americana (o gosto pelos desportos autóctones – basebol, futebol americano, basquetebol -, a adoração de ícones do cinema, a paixão pela paisagem de fronteira e o Homem que por lá vagueia, etc.) são objecto de despudorado fascínio em qualquer lugar do planeta. Algum problema? Não.

E para quando Don DeLillo, o mais atípico (e, hélas, europeu) dos grandes escritores dos E.U.A.?

[Sérgio Lavos]

Arrastão

Uma Santa Aliança de blogues a que faltava um auto-retrato. Espera-se, daqui para frente, um ritmo (ainda mais) estrondoso de actualizações neste blogue - vou apostar, nitidamente, em fazer-me ao penalti.

[Sérgio Lavos]

Slowdive/Catch the breeze



[Sérgio Lavos]