31/12/10

A verdade

O sentido duplo da frase: não há na verdade qualquer erro. Apenas funciona se ignorar a má pontuação. Na verdade, não há qualquer erro. Pena que me tenha convencido, ao longo do tempo, de que a verdade é mais errada do que a mentira. Não porque seja menos moral. Ou mais fácil. Antes porque torna tudo muito mais difícil. E a frase errada torna-se mantra inútil. Circular.

28/12/10

O Americano

Há uma certa elegância não desprezável na câmara de Anton Corbijn. Em Control seria mais evidente, mas a verdade é que a estetização de uma tragédia - a morte de Ian Curtis - esvazia, até certo ponto, a importância do acontecimento. O Americano não corria esse risco - adapta uma obra de ficção. Mas também não corre o risco porque Corbjn decide evidenciar a sua veia cinéfila. Não há muito de Antonioni - as críticas que li, estranhamente, dizem que sim. Mas há uma certa secura na caracterização do assassino - um George Clooney em underacting, rosto fechado a fazer lembrar, estranhamente, um Buster Keaton deslocado - e um gosto bem vincado pela contemplação da paisagem. Mas esta procura dos espaços abertos do campo italiano contrasta com as cenas dentro de portas, actos de um homem só sublinhados pela proximidade da câmara. O assassino de Clooney é um criminoso metafísico, como o carteirista de Bresson. Depois de um trabalho que corre mal - a "amiga" morre - decide desistir e aceitar uma última missão. O trabalho consiste em fabricar uma arma para uma assassina. A destreza do artesão sobressai através do trabalho de montagem, dos sucessivos close ups das mãos do assassino montando a arma, afinando a mira. O assassino de Clooney é um homem fora de tempo, um artista. Por isso, o seu disfarce na aldeia italiana onde se exila é o de um fotógrafo. Mais do que um duplo do realizador - Corbjin começou por ser isso mesmo - ele é um duplo de si próprio; o shoot do atirador é o mesmo do fotógrafo (e do realizador, já agora), e os dois mesteres convergem na cena em que Clooney e a assassina (Thekla Reuthen) vão para o meio da natureza afinar a mira da espingarda (óbvia homenagem a uma cena de Day of the Jackal que o Ouriquense lembra). O fotógrafo de paisagens disparando contra o céu e a perfeição de um lugar que parece não existir.
Depois, há a personagem de Clara, a prostituta por quem Jack se apaixona. Um lugar comum que, não o deixando de ser, acaba por se tornar obrigatório no percurso do assassino. E o que acaba por salvar esta fraqueza do filme é a extraordinária beleza de Violante Placido; ela consegue roubar todas as cenas a Clooney. Curiosamente, pode-se comprovar que grande parte dos fascínio de Placido nasce do seu desempenho, que acaba por torná-la mais sedutora do que as fotos de sessão encontradas no Google. Desde Naomi Watts em Mullholland Drive que não sentia tal distância entre a realidade e o cinema. A elegância de Anton Corbjin, apesar de alguns defeitos, acaba por levar a melhor no fim.

08/11/10

A Rede Social



Ontem, fui ver A Rede Social, de David Fincher. Hoje, espreitei duas ou três críticas nos jornais portugueses. Seria provável a diferença de opiniões (não vou falar, para já, de cinema). Os críticos que não têm qualquer ligação às redes sociais afirmam, sem dúvidas, que Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook, não sai bem deste filme. De resto, esta ideia tem sido quase unânime. O próprio não terá gostado, mas não a ponto de ter processado alguém ligado à produção do filme. O que é sensato; e se compreende: eu, fiel ao meu estatuto de assertivo utilizador das redes sociais - pelo menos enquanto dura o entusiasmo inicial - acho que, somando tudo, a imagem de Zuckerberg pouco será afectada pelo filme. O americano de classe média que chega a Harvard por mérito próprio; o geek dos computadores que, antes de chegar à universidade, já vira uma invenção sua ser aproveitada pela Microsoft; o anti-social que criou o brinquedo favorito dos misantropos da idade moderna. Tudo isto, claro, mas não só: fez história, claro, e o argumento de Aaron Sorkin não se cansa de reforçar esta ideia. "Amigo", a palavra que em tempos era reservada para aquela meia dúzia de pessoas com as quais se poderia contar em qualquer situação, ganhou outro significado. Mais do que criar uma nova rede social, Zuckerberg redefiniu, até certo ponto, as relações entre as pessoas. Sem forçar a sociologia barata, a verdade é que essa meia dúzia de sortudos continua a existir para além do Facebook. Com sorte, nenhum dos amigos será amigo no Facebook; não lêem o blogue que escrevemos à escondidas da namorada; não fazem a mais pequena ideia do que será o Twitter - essa maravilha recém descoberta pelo Presidente que depressa cairá no esquecimento. Mas as relações surgidas no Facebook, sujeitas ao escrutínio da rapidez e do arrependimento - a certa altura, uma linha de diálogo do filme repete esta ideia: na Internet, não se escreve a lápis, mas sim a caneta; a ironia da analogia é evidente: da caneta riscando no papel tinta definitiva ao byte fixando informação numa rede de servidores sujeita ao desaparecimento, um passo curto na história da Humanidade - serão tão provisórias como o meio que as suporta. E é dessa intangibilidade virtual que trata, numa segunda leitura, o guião de Sorkin, repetindo a ideia batida que os info-excluídos têm dos viciados em redes sociais: quem não consegue fazer amigos a sério, mete-se na Internet e reinventa-se, torna-se outro (e sem recorrer a alucinogénios ou a heterónimos pessoanos).
E quanto à obra em si, seria possível filmar a alienação e o "ar dos tempos", a velocidade e o enclausuramento virtual sem cair no moralismo paternalista (lembro-me de Afterschool, um filme recente que não conseguiu escapar à ratoeira) ou no ritmo videojogo que parece ter sido adoptado pela produção mainstream de Hollywood? Foi, claro, possível, porque se trata de David Fincher. Não falo do realizador da lamechice intragável cujo nome não vou aqui escrever - demasiado comprido - mas que supostamente adaptava um conto de F. Scott Fitzgerald. Adiante. Fincher voltou, e acredito que não lamentará o Oscar ganho com a aventura anterior; contudo, o regresso a temas antigos - a tentação do ensaio socializante sobre a Idade Moderna, a subversão moral do indivíduo moderno, a alienação dos solitários individualistas com quem toda a gente se cruza diariamente (a todos nós, utilizadores do Facebook, caminhamos para este Admirável Mundo Novo) -, certamente o terá rejuvenescido uns anos (o mergulho na loucura do quotidiano é sempre revigorante, dizem). Da psicopatologia niilista do assassino de Seven ao autismo materialista e, no limite, execrável de Zuckerberg, um curto, rápido, movimento. Não é preciso muito, de resto: o material de partida, o argumento de Sorkin, é inteligente, a um passo de ser brilhante, apesar da receita ser conhecida; partir do particular - a ascensão de Zuckerberg, génio carente que acaba por perder todo o amigo (é só um, parece) no caminho para a glória (e os milhões ganhos são apenas um pormenor da história, nascida de uma vontade de recuperar uma namorada que se atreve a desdenhar das suas ambições (a cena inicial é, sem rodeios, das melhores coisas que eu vi no cinema dos últimos anos) - para o universal - bom, não preciso de dizer mais, quem não quereria estar no lugar do fundador do Facebook? Os gregos fizeram-no há uns bons milhares de anos; que se tenha tentado fazer agora aplicando a fórmula a um conceito que parece ser volátil, terá sido um achado. Mas enfim, como falamos de cinema, a arte do presente contínuo que melhor consegue fixar o passado, o atrevimento terá outra dimensão. Este é o nosso tempo; e o cinema encarrega-se de o aprisionar, de o guardar para as gerações futuras, essas que olharão - ou recordarão - o Facebook, do mesmo modo que nós olhamos para uma pena de ganso num tinteiro. Facebook como cliché romântico. Quem diria?

(O final do filme é tão bom como o início. E a música dos Beatles, Baby You're a Rich Man, rima, de forma irónica ou nem por isso, com a música do final do Clube de Combate, Where is My Mind, dos Pixies. Sim, claro: não nos esqueçamos da esquizofrenia, mais um tema caro a Fincher. Foi você que falou em auteur?)

- Originalmente publicado no Arrastão -

04/11/10

Contrato com o leitor

Sentado no meu cadeirão, lendo Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, vejo o céu ir ganhando as cores do fim do dia, e o tempo a ir atrás, desaparecendo para lá dos telhados cinzentos. A verdade é que não leio, escrevo. E escrevo achando que é cada vez mais reduzido o tempo que temos para deixar o tempo passar, fluir sentindo cada minuto desaparecer. A leitura é uma boa medida do tempo interior. Se deixarmos os sentidos levantar voo, melhor; dá para pensar em tudo o que arquivamos, deixamos para pensar depois, dá para que o corpo se vá infiltrando no pensamento, sentir o cheiro da pele, a pulsação, o movimento interno a construir a imobilidade externa: tudo é imóvel, fora do corpo, o tempo é uma larga extensão – como o areal de uma praia vazia - que a memória percorre.
Li o livro? Acompanhei a história desse médico inverosímil, o seu percurso desassossegado para o nada? Se o li, desvaneceu, confirmo a intuição de Maurice Blanchot. A história já não se encontra no lugar onde estava: aquela hora em que eu, sentado no cadeirão ao fim da tarde, percorri as páginas em sossego.
Uma acumulação inútil sobrepõe-se a tudo. Não sou um pessimista, mas convivo muito bem com o realismo do desaparecimento. Brinco com isso, escrevo ludicamente sobre o assunto, leio autores que desapareceram ou autores que dedicam as suas histórias ao tema. As estantes enchem-se de livros em que eu nunca irei pegar, nem sequer para ler as primeiras linhas. Se o que leio irá desaparecer, salvo milhares de livros do esquecimento - tudo o que não leio continuará a existir.
Alguém me sopra ao ouvido: as histórias que os livros contam nunca desaparecerão; sobreviverão aos escritores, aos homens. Não aceito esta ideia antiga, o lugar-comum. Um mundo sem homens, no qual as histórias insistem em viver, guardadas em bibliotecas borgeanas que ninguém poderá visitar. Imagino o ar de uma biblioteca vazia - o pó rarefeito cobrindo os livros, lentamente, até que as palavras escritas nas capas se deixem de ler; até que desapareça o nome dos autores; e a história que ele conta. A biblioteca, contudo, não está lá. No meu cadeirão metafísico, apenas existo eu e o livro que leio - a biblioteca é um esforço da imaginação, portanto mais material do que algo que tenha uma existência real e eu nunca tenha imaginado.
Contaram-me uma história. Um escritor morre, e de um momento para o outro - aquele derradeiro segundo em que a vida regressa ao brevíssimo presente – todos os livros escritos por ele, publicados e republicados, desaparecem de todas as estantes de todas as bibliotecas, de todas as livrarias, de todos as casas ou edifícios onde sobreviva ainda uma palavra do autor. A obra morre com a morte do autor, assim a história me foi contada, e eu prometi não a contar de novo, amedrontado por uma superstição sem nome. Esse escritor, todo o tempo que viveu tentou apagar, meticuloso, o instante imediatamente anterior, escrevendo. As histórias eram o espelho do seu método, como se a escrita fosse um revólver e a memória a bela mulher que nasceu para morrer às mãos de um assassino contratado. E ao escrever ele traía o seu contrato, fixando em papel o passado. Mas havia um trunfo na manga, um plano subterrâneo. O que ele escrevia era uma traição ao que tinha vivido. Se pudesse existir apenas como o autor das suas histórias, era como se fosse uma personagem, alguém que, de verdade, nunca foi. A subversão era tão sofisticada que ninguém daria por ela; portanto, não chegava a ser. Ao morrer, deixaria uma obra que era o contrário do que tinha vivido, e ninguém se lembraria. No entanto o plano tinha uma falha: a sua falsa vida, a que os livros guardavam, declina o convite para eternidade e também ela morre com o autor. Trágica derrota.
Talvez Enrique Vila-Matas seja um traidor, quando se lembra de um Robert Walser que nunca chegou a conhecer caminhando sobre a neve naquele célebre dia de Natal, procurando o esquecimento. Talvez se imagine no lugar das crianças que encontraram o escritor suíço deitado no caminho, um homem desconhecido que acabou por lhes mudar o curso da vida. Um escritor morto é tal e qual um estranho morto sobre a neve, e o orgulho que convence Vila-Matas do contrário é uma terna ilusão que apenas o pode levar à absoluta infelicidade. Consigo perdoar Vila-Matas, e sentir até alguma cumplicidade ao imaginá-lo visitando a casa de saúde onde Walser passou os anos finais da sua vida. Ele e a sombra do Doutor Pasavento – figura sombria resgatando de um filme outro célebre doutor, Caligari, o médico dos prodígios demoníacos. Pasavento deixa de dar notícias ao mundo e exila-se na sombra, como Caligari, trazendo pela mão um Vila-Matas que começa a existir através das suas personagens. A imagem que eu tenho dele é de um duplo de Pasavento ou do narrador de Paris Nunca se Acaba, e ele gostaria com certeza de saber que o café de Barcelona onde costuma escrever é mais real – e romântico – numa crónica que eu li do que é na realidade. Um banal café na maior praça de Barcelona e, ao fundo, ocupada por um grupo de barulhentos turistas americanos, a mesa onde nasceu Pasavento. Pasavento, de destino amaldiçoado pelo livro pousado sobre a fórmica, o livro de Blanchot onde este fala dos escritores que tendem para o desaparecimento.
Agora é, quem sabe, tarde para o arrependimento, e descubro que o que acabei de escrever perdeu toda a urgência; li o livro do doutor há dois anos e sete meses, era Inverno e chovia. Apaguei, no que escrevi, algumas palavras. Era assim, a frase: Sentado no meu cadeirão, lendo Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, vejo o céu ir ganhando as cores do fim do dia, e o tempo a ir atrás, desaparecendo para lá dos telhados cinzentos e das chaminés de Inverno, fumegando. Não queria ceder tanto à literatice da autofagia, mas cada nova palavra que se acrescenta ao texto o conduz para outro caminho. Por cada frase lida há outra frase morta, desaparecida. O presente perde a voracidade e a máscara que uso para o enganar cai (mas não se pense numa tragédia grega).
Em Barcelona fazia tanto calor como agora; era Agosto, fui à praia e aos habituais sítios turísticos e não encontrei Pasavento. Talvez ele estivesse nessa altura de férias numa ilha mediterrânica – em Agosto os barcelonenses fogem da cidade e os poucos que ficam ou são loucos ou escritores – assim escreve Vila-Matas. Eu fui um dos indesejados, um vírus, uma praga na cidade, um dos muitos milhares de turistas que horrorizam os loucos que ficam. E entrei no café da Plaza Catalunya à procura já não sei se de Vila-Matas ou de Pasavento, e encontrei apenas turistas suando sob os panamás e as camisas coloridas, debicando alarvemente (não é contraditório) tapas e bocadillos, sorvendo cervejas para esquecer o calor e o desejo despontado pelos bandos de adolescentes nórdicas que se passeiam pelas ramblas, imunes ao encanto alarve dos homens de meia-idade.
Mas nada do que escrevo tem a ver com esquecimento nem com o cadeirão onde me sentei e recordei, no passo de uma frase sem nada de especial, aquela tarde em Barcelona. O cheiro de uma madalena é um salto sobre a ponte, sem elástico. Arrumo os livros nas tristes prateleiras da memória. Transforma-se o livro em coisa inanimada, sem vida, um breve lapso de tempo preso num irrecuperável fim de tarde, a que nunca poderemos voltar. Classifica-se, cataloga-se, destrói-se a alma de um livro.
Leu o texto precedente? Durará o tempo em que eu o escrevo, recuso que algum papel o condene ao esquecimento.

(Texto publicado na revista Alice, reformulação de um texto antigo).

19/10/10

Isto

Há muito que não escrevo sobre o acto de escrever - a expressão é desajeitada e comum o suficiente para ter pensado numa alternativa; mas não achei. Houve um tempo em que o metabloguismo priápico era um dos passatempos preferidos dos bloguers; na idade do cansaço, já pouco se vê disso. Há outros brinquedos mais rápidos e próprios de quem procura este meio para comunicar. No meu caso, abreviei, dentro do possível, a minha passagem pelo twitter; pouco actualizo o facebook; e sirvo-me deste blogue, mais pessoal, para ir deixando o pouco que não cabe na vida. Deste modo, as actualizações escasseiam; e, muitas vezes, apenas trazem algum arrependimento. Coisa pouca, incómodos não muito importantes. Mas será outra coisa, a essência disto?

13/10/10

Para quê?

Além disso, para que impedir as pessoas de morrerem se a morte é o termo normal e legítimo para cada um de nós? Que importância tem que um mercador ou um funcionário quaisquer vivam mais cinco ou dez anos? Ora, se considerarmos que o objectivo da medicina consiste em aliviar com panaceias o sofrimento, surge involuntariamente uma pergunta: aliviá-lo para quê? Em primeiro lugar, dizem que o sofrimento leva o homem a atingir a perfeição; em segundo lugar, se a humanidade realmente aprender a aliviar o sofrimento com pastilhas e gotas, abandonará por completo a religião e a filosofia, nas quais tem encontrado até hoje não só protecção para todas as desgraças, como ainda felicidade. Púchkin, no seu leito de morte, passou por sofrimentos atrozes, o pobre do Heine esteve paralisado durante vários anos; por que não hão-de estar doentes um Andrei Efímitch ou uma Matriona Sávichna, cuja vida é fútil e seria completamente vazia como a da amiba, se não fosse o sofrimento? 

Anton Tchékhov, "A Enfermaria nº 6", incluído em Contos de Tchékhov, vol II, ed. Relógio d'Água, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra

11/10/10

Quinta-feira



Conversa de Bairro, com o realizador Pedro Costa e o crítico de cinema Luís Miguel Oliveira, moderada por Susana Viegas, em torno da filmografia de Pedro Costa, cuja obra é monografada no livro cem mil cigarros, publicado pelas edições Orfeu Negro em parceria com a Midas Filmes.

cem mil cigarros oferece-nos uma visão retrospectiva da obra cinematográfica de Pedro Costa, reunindo textos de 29 críticos, ensaístas, realizadores e artistas de todo o mundo, entre os quais João Bénard da Costa, Thom Andersen, Chris Fujiwara, Jacques Rancière e Jeff Wall. Organizada e prefaciada por Ricardo Matos Cabo, esta monografia permite-nos um olhar alargado sobre a obra de Costa - os seus filmes, o seu pensamento, a paixão de realizar -, hoje uma referência fundamental no cinema contemporâneo.

Livraria Bulhosa Campo de Ourique
Rua Tomás da Anunciação 68 B | 1350-330 Lisboa

04/10/10

Always mind the classics

Folds of scarlett drapery shut in my view to the right hand; to the left were the clear panes of glass, protecting, but not separating me from the drear November day. At intervals, while turning over the leaves of my book, I studied the aspect of that winter afternoon. Afar, it offered a pale blank of mist and cloud; near a scene of wet lawn and storm-beat shrub, with ceaseless rain sweeping away wildly before a long and lamentable blast.

Jane Eyre, Charlotte Brontë

Repare-se no uso do ponto e vírgula. Ou como respirar depois de mais uma tentativa com uma das novidades da rentrée. Deus as tenha em grande conta; que eu não.

27/09/10

Doutor Avalanche

Gosto muito das histórias do Rui Manuel Amaral. Tanto, a ponto de achar que elas não mereciam esta sinopse (ou a sinopse não as merece, tanto faz) - mais um termo da "modernidade" livresca que é saudável desprezar - numa livraria on-line. Seria tão bom se os autores decentes pudessem dispensar as idiotices de que a publicidade se lembra. Um livro não é um pacote de massas. Ponto.

Noite

Coração.

Nirvana


Agora que já tenho idade, e portanto juízo, suficiente para julgar os Nirvana pela qualidade musical, e valorizar esse lado da banda mais do que a simbologia que lhe está associada, lembro-me de um tempo em que a música pouco tinha a ver com grandes músicos, refrões marcantes ou riffs de bateria irrepreensíveis. Quando gostava de música sem saber muito bem porquê, sem conhecer o suficiente nem ter lido uns quantos livros sobre a razão de gostar. Nirvana foi música em estado puro, sem racionalização absurda ou relativizações imbecis e redutoras. Tenho saudade disso. Da pureza e da descoberta, a sequência perfeita desse meio termo romântico entre o fim da adolescência e o princípio da idade adulta. Espero que os putos de agora ainda saibam sentir isso.  Acima de tudo, procurar.

23/09/10

O escritor popular

O escritor popular é um escritor sob suspeita. Mais ainda quando o escritor popular consegue ser popular e alegrar as franjas certas, os fraques e as cartolas, os carros alegóricos, a dançar. O escritor popular, quando se lança, tem sempre alguém a amparar - e leva as luzes e os microfones, a bailar, num estrépito de carrossel e música. Mas escreve. E sua. Dança e lança, luminoso escritor popular, amado pelos leitores, a jóia precária da saison. Coitado do escritor popular, em permanente andança e cagança, cedendo à solicitação de ocasião, ao cumprimento, à vénia. Sorriso e salamaleque, boa presença. E a literatura, o que será dela? Dispensável. Nada que um bom vinho não possa disfarçar. E um livro é apenas um conjunto de páginas agrafadas, ao qual se cola um determinado preço. Minudências. As tripas, o coração e a cabeça oferendas na bandeja, excrescências.

21/09/10

Quartos sobre o mar

Edward Hopper.

Chá quente e torradas

O frenesim da reentrada, útil, exercício de vaidade ou motor da mecânica perpétua da novidade, é um paradoxo da estação. O Verão vai-se diluindo na chegada mais rápida da noite. De manhã, saímos de manga curta e sentimos o frio leve de Outono. Esperamos e receamos o último dia de praia - e o fim de tarde, sol baixo, que ele nos oferece. E depois achamos que o Verão deixou de ser necessário, e será melhor ficar em casa, à espera da primeira chuva. A realidade troca-nos as voltas. O regresso à rotina diária é uma violência - o mundo acelera, mas o fim do Verão mereceria o som triste de uma valsa tardia. Não quero reentradas, nem rentrées, apenas um chá quente e algumas torradas - mesmo que não beba chá, nem coma torradas.

15/09/10

Penelope

Há poucas divas no cinema actual, e as que há nada têm que ver com as de antigamente. São imperfeitas, desiludem-nos, aparecem nos tablóides a cores, carregando sacos de compras, divorciam-se e vêm para imprensa cor-de-rosa lavar a roupa suja dos seus escolhos amorosos. Além disso, o cinema deixou de as servir, não temos Lubitsch ou Billy Wilder ou Howard Hawks a trabalhar nos filmes de produtor, como acontecia na idade de ouro de Hollywood. Papéis bons, grandes interpretações, figuras maiores do que a vida encarnadas no grande ecrã por actrizes intocáveis, tudo se perdeu. Restam talvez Deneuve, Binoche e Hupert em França (Isabelle Adjani trabalha pouco e é irregular nos seus desempenhos). Na América, nenhuma veterana, a não ser Meryl Streep, mas como lhe poderemos perdoar o desfile de maus filmes? Daí para baixo, o deserto: Michelle Pfeiffer recusou o estatuto e perdeu-se. E todas as outras são claramente sobrevalorizadas, a começar em Nicole Kidman e o seu amigo Botox e a acabar na trupe de ex-modelos que ganharam o Oscar a fazer de coitadinhas em filmes que rapidamente caíram no esquecimento.
Enquanto Scarlett Johansson não irrompe da crisálida, teremos sempre a europeia de importação, a única possível herdeira de Greta Garbo ou Ingrid Bergman. Talvez nunca perca o sotaque espanhol - o que joga a seu favor, se pensarmos em Garbo, por exemplo. O que temos é uma espantosa actriz. E enquanto houver Almodovar (esperando que haja mais Woody Allens que reparem nela), haverá Penelope Cruz. A diva possível.

Chica

Boceta

Dor de dentes

O cronista do quotidiano atrever-se-à a tudo para preencher o papel em branco. Procura assunto nos jornais, recorda acontecimentos que julga ter esquecido - ou que esqueceu, e pensa ainda lembrá-los -, pega em frases deixadas a meio e recomeça-as, apaga e volta a tentar. Nada o fará desistir da sua função. Metódico, é pior que um parasita - alimenta-se da vida dos outros e nada oferece em troca. Sobretudo, arrisca-se a chegar a um dia em que irá escrever sobre a dor de dentes que não tem, ou pior, sobre o tema que não encontra para a sua crónica do quotidiano.
Eu, por outro lado, tenho mesmo uma dor de dentes e por isso posso afirmar, como se fosse um político, que falo verdade quando escrevo que tenho uma dor de dentes. Mortifica, desgasta, transforma o pensamento numa papa mole e sem préstimo. Não há comparação que resista à dor de dentes, metáfora que sobreviva à puta da realidade. O dente metafórico seria uma bela invenção - o que impedisse de perder alguns minutos numa reflexão inútil sobre o dente real. Nada original. Talvez não tenha uma dor de dentes porque o dente que me doía é uma sombra vaga na cratera deixada pelo dentista. Poderia falar dos meus movimentos intestinais, como o poeta concretista de Chesterton. Nem mais, nem menos. O justo.

07/09/10

Dançar com Zurlini


- A menina dança?
- Sim, obrigado.

Roberta pousa o cigarro e o copo e dança com Carlo ao som do jazz de Mario Nascimbene. Dança, dançam os dois, dançam e sabem que o fio que os une – o desejo, o desejo – supera a tragédia que os aproximou. O marido de Roberta morreu na guerra, Carlo é um burguês entediado, namorisca com Rosanna e espera que a sua vida passe ao largo do tempo, da guerra, e a juventude seja eterna.
Tudo começa na praia, Verão, um grupo alegre banhando-se na água cálida do Mediterrâneo; estamos em Rimini, a estância onde nasceu Fellini, o nome grande do cinema italiano que está nos antípodas de Valerio Zurlini. Os lugares que os aproxima são também território de afastamento – a cidade que serviu a Fellini de motor da memória, inspiração, berço de uma criatividade ostensiva, estrepitosa e freudiana a ponto de se tornar fastidiosa, serve de mapa da intimidade a Zurlini, cada ponto cardeal nó de um desejo perseguido por Carlo e Roberta: a praia, onde a intrusa ao grupo, a mulher quase balzaquiana que trata de uma criança, perto dos jovens, desperta pela primeira vez a atenção de Carlo, a praia sobrevoada por um avião alemão desviado da sua rota, a intromissão inicial de realidade no idílio do grupo, a praia onde mais tarde Carlo e Roberta são descobertos, noite escura, por um polícia que relembra a Carlo a fuga à guerra – belíssima sequência, pela sombra, plena de silêncio. Princípio, meio e fim naquele lugar fora do espaço – uma língua de areia junto ao mar, o tecido urbano a dois passos – e fora do tempo, suspenso na beleza dos actores, na sua eternidade fátua.
O marcado contraste entre o tempo da acção – a Segunda Guerra Mundial – e o tempo vivido primeiro pelo grupo de jovens e depois pelos amantes, é o mote do filme, tema repetido por Zurlini ao longo da sua restante obra. A passagem dos anos ou traz a desilusão ou a queda, e à ingenuidade e à ilusão da juventude sucedem o cinismo ou a amargura. Em O Deserto dos Tártaros, derradeiro filme de Zurlini - adapta a obra homónima de Dino Buzzati - assistimos ao mesmo processo: Drogo (Jacques Perrin) é um jovem militar colocado num forte situado na fronteira de um país – imaginário, e esta é outra chave que o realizador nos oferece: a paisagem irreal, as cores do deserto, os tons da fortificação, o isolamento, vão criando um espaço fora do mundo e do tempo. Há quantos anos esperam os soldados pelos Tártaros? E Drogo, o jovem inocente que busca a glória da vida militar, saberá que o futuro apenas lhe trará a saciedade inútil da repetição? A intenção de Buzzati tem a perfeita ilustração no rosto de Perrin: a jovialidade dá lugar à crispação, a beleza à velhice prematura, a esperança (palavra tão falsa) à resignação e à queda. Não precisamos de reafirmar os evidentes paralelismos com a vida, a sua estrutura e o esquema simples da existência: esperar, esperar sempre por algo indefinido que acaba por não acontecer, a revelação de um sentido. A chegada dos Tártaros é o sonho possível.
Regressamos ao filme mais antigo, intimista – a câmara flui com languidez pelos corpos dos actores, aproxima-se, os breve close-ups de uns dedos tocando noutros dedos, dos olhos de Carlo procurando os olhos de Roberta enquanto a câmara dança com eles. Esta proximidade é como uma melodia de fundo no filme que serve de tela para outros temas: a guerra, a luta de classes, a nobreza. Mas o tema retorna de forma obrigatória – Um Verão Violento é um melodrama, uma história de amor que consegue cristalizar a beleza mundana de Eleonora Rossi Drago (Roberta) e a fome de vida de Jean-Louis Trintignant (Carlo). Na cena crucial do filme, Rosanna (Jacqueline Sassard), a pretendente traída, segue os dois amantes – já o são, antes de sequer se tocarem – e observa da varanda o primeiro beijo. Espantosa sequência, espantosa sobretudo pelas escolhas de Zurlini: no primeiro momento de amor, um plano afastado, em suave picado, e estamos no lugar de Rossana, a despeitada. Estamos, e sempre estivemos, mas não tínhamos ainda percebido. E depois, um ou dois segundos depois, o primeiro corte e descobrimo-nos no lugar dos amantes que percebem estar a ser observados. Contra-picado suave e vemos o espanto de Rossana, a confirmação da suspeita, mas também o fim do feitiço – Carlo e Roberta separam-se, o tempo retoma o seu andamento, e eles sabem que transgrediram.
O Deserto dos Tártaros, apesar de ser uma co-produção de vários países europeus, com um elenco multinacional e o peso de uma grande produção – Zurlini teve vários problemas para terminar o filme – não deixa de ter um nítido cunho de autor. Os espaços do forte são fechados, claustrofóbicos: a intimidade, que em ambiente masculino toma a forma de camaradagem, é forçada pela situação - não só o aquartelamento mas sobretudo a pressão do espaço exterior, amplo, até ao limiar do horizonte. As muralhas do forte raras vezes são transpostas – apenas do lado de cá para entrarem novos soldados e saírem para novas colocações, e uma ou outra breve incursão em território inimigo. Mas estas incursões são vistas como perigosas, o que sublinha a sensação de território de ninguém onde o forte está implantado. O deserto não é apenas onde está o inimigo, é a miragem de liberdade experienciada pelos soldados; entre a morte e a espera, entre os ataque dos Tártaros e a abdicação, apenas pode haver uma escolha, uma vontade, o destino de qualquer homem de guerra, mas o tempo passa e esse desejo nunca é satisfeito. Estamos enclausurados com os soldados no forte, a caminho de nada.
Se a guerra é uma ideia vaga, algo que aconteceu no passado e pode voltar a acontecer no futuro – e entretanto o filme mantém-se nessa zona suspensa entre duas inexistências – em O Deserto dos Tártaros, em Um Verão Violento ela vai-se infiltrando no tecido da realidade (uma realidade sonhada, já sabemos), através de pequenos sinais, sintomas de mal – o avião alemão na praia, notícias da guerra na rádio durante a festa (e a música pára, a alegria cessa), o polícia que questiona Carlo – até tomar conta de tudo, da vontade das personagens e do rumo do filme. Quando os dois começam a encontrar-se regularmente e o caso torna-se quase familiar, Carlo dá-se conta da tragédia que ensombra Roberta: o marido morreu na guerra. Os seus hábitos burgueses, hedonistas e despreocupados, tornam-se um terrível defeito, não sabemos se aos olhos de Roberta, mas certamente para si: o confronto com o mártir de guerra, um fantasma (inventado?) acaba por levar Carlo à descoberta da idade adulta. Lentamente a urgência de uma decisão, a pressão da violência, transforma a natureza do amor sentido pelos dois. Carlo tem de se alistar, Roberta teme nova tragédia, e tudo acaba por culminar na fabulosa sequência final, quando o comboio em que Carlo e Roberta seguem é bombardeado. O génio de Zurlini evidencia-se: a montagem acelera a acção, apressa a fuga dos amantes e serve na perfeição o cenário de batalha, mas a câmara nem por um momento se afasta dos dois, captando-os no momento decisivo, quando Carlo tem de escolher entre a guerra e a fuga. Ele sabe que é um jogo perdido à partida: se partir pode morrer, se ficar é preso e perde Roberta. Mas o futuro não existe para além do filme. Ele deixa partir Roberta e assim conquista-a, sem condições.
Valerio Zurlini é o grande realizador italiano esquecido – da mesma linhagem de Antonioni, mas menos vanguardista, menos interessado no mecanismo do cinema e mais em fazer nascer emoções no espectador. O melodrama é o seu território, mas as suas armas não são aquelas que associamos ao género clássico de Hollywood. Não se trata de grandes histórias de amor filmadas em Technicolor, artificiais (muitas vezes artificiosas), tear-jerckers inesquecíveis com actrizes em modo de sobre-representação e cenários coloridos e mais ou menos camp. Também estamos distantes do neo-realismo italiano, de Vittorio de Sicca ou do primeiro Rossellini. Os sentimentos são discretos, as emoções contidas, a câmara subjectiva quanto baste e quase sempre próxima das personagens. Num filme de grande orçamento como O Deserto dos Tártaros, Zurlini esvazia a solenidade da paisagem e entretém-se a filmar as relações entre os soldados, a registar a evolução existencial de Drogo. Parte do quadro maior e aproxima o olho cinematográfico do pormenor, enclausurando os actores, para depois filmar o deserto em planos que sublinham a sua solidão. O efeito contrário é sentido em Um Verão Violento: da banalidade fútil de um grupo de jovens em férias e de um casal que daí nasce – o quadro intimista – ao grande plano da guerra que desde o início se ouve em fundo. A história privada de Carlo e Roberta – o tempo fora do tempo - apenas ganha importância quando o ruído da tragédia pública se torna demasiado forte para ser ignorado – o regresso a um tempo real – o Verão de 1943, o ano em que os Aliados invadem a Sicília e o Sul de Itália, o Verão violento do título. Se esta violência se refere à paixão vivida pelos amantes ou à guerra, pouco importa, e a intenção de Zurlini certamente seria atribuir os dois sentidos à palavra.
Zurlini dança connosco como Carlo dança com Roberta: a sua câmara seduz, como seduzem todas as coisas belas e perecíveis, a eternidade perdida das personagens. Enlevados pelo elegante movimento da dança, só nos resta a entrega, tão perdidos como Eleonora Rossi Drago nos braços de Jean-Louis Trintignant. Aquele primeiro beijo…

(Texto publicado inicialmente na revista Alice.)

05/09/10

Uzak

Nenhuma praia. Istambul com neve. A história de um acaso: a neve começa a cair e Ceylan leva a equipa de filmagem para as ruas da cidade, tentando capturar o momento efémero. Um acaso. Meu Deus, um acaso.

É fácil

É fácil começar a escrever quando se tem uma data por cima. Um diário é uma prótese para todos os aprendizes de escritor desse mundo, todos os coitados que apenas podem olhar para o palácio, promover o génio alheio. E este diário, mais do que um pretexto para começar a escrever, é um silenciamento, um exorcismo, ou o relato impecável de um condenado. Começar pela principal falha, o pior defeito do que escrevo, que é não poder prever até que ponto as palavras de agora serão ultrapassadas pela realidade, e o presente será boicotado pelo que virá, é mais do que um acto desprovido de sabedoria – é assumir a derrota.

04/09/10

Duas vezes duas


Ashley Judd e Laura Linney. As melhores actrizes de segunda linha - as tais que ou são secundárias em filmes importantes ou têm o papel principal em filmes série B - que Hollywood nos pode dar. É muito, se pensarmos que a primeira linha é ocupada por Nicole Kidman ou Angelina Jolie.

31/08/10

Uma na Bravo, outra na ditadura



A minha geração, a rasca ou à rasca, a primeira a sofrer as consequências da crise perpétua de Portugal, a geração que lutou contra as propinas - em vão, a geração dos professores a prazo que mais parecem caixeiros-viajantes, a geração de que os mais velhos não gostam e que os pais toleram, a geração que ainda não saiu de casa dos progenitores por não ter dinheiro para uma vida independente ou por comodismo consumista, a geração com uma taxa de desemprego que ultrapassa os vinte por cento, a geração precária, trabalhando anos e anos para o mesmo patrão (seja o Estado ou privado) a passar recibos verdes, a geração a que foi prometido o mundo se conseguisse uma licenciatura e que agora trabalha em call-centers, caixas de supermercado ou livrarias, a geração dos eternos estudantes, do bacharelato à licenciatura ao mestrado ao doutoramento e ao pós-doutoramento com via verde garantida para o desemprego ou um emprego abaixo da escolaridade ou a emigração em busca de um trabalho numa empresa ou universidade estrangeiras, a geração explorada por patrões de vistas curtas, geração que não sabe muito bem quais são as lutas justas, ou as válidas, ou sequer que lutas há para lutar, a geração que cresceu num Portugal optimista e chegou à idade adulta num país de rastos, sem confiança no presente nem esperança no futuro. A geração dos anos 80, das séries importadas, do Verão Azul e de Miami Vice, a geração da Spur Cola e das bombokas, a geração do Marco e da Galactica, a geração do Regresso ao Futuro e dos Gremlins, a geração que cresceu synth pop e se descobriu grunger quando entrou na universidade, a geração que tornou o alternativo mainstream e o mainstream respeitável. André Valentim Almeida decidiu fazer um comentário e, como membro de pleno direito desta geração, não conseguiu que fosse exibido comercialmente. Por isso disponibilizou-o on line. Sim, esta é também a geração que melhor consegue viver com todas as dificuldades, a geração "canivete suíço e uma pastilha do MacGyver", a geração que resolve problemas, que sobrevive. O futuro. É ver o tal documentário, que vale muito a pena, aqui.

23/08/10

Dançar



Adam Kohn, sobrevivente do Holocausto, decidiu celebrar em Auschwitz e outros lugares da sua via sacra (o gueto de Varsóvia, o museu que Hitler quis criar para assinalar o extermínio dos Judeus) a sua sobrevivência. O vídeo, ideia da filha, mostra Kohn e a sua família dançando nestes lugares ao som de "I Will Survive", de Gloria Gaynor - e também de Leonard Cohen, no final. Uma celebração, sem dúvida, da resistência à morte e à mais absurda violência, uma espécie de riso na cara do destino, contra todas as probabilidades e contra - também - as críticas dos zelotas, os de sempre, quem julga deter o exclusivo do sofrimento e reclamou de tal sacrilégio. Um exemplo.
Notícia aqui.

(Publicado inicialmente no Arrastão.)

Praias (9)

Andrei Zvyagintsev.

14/08/10

Carros, livros e filmes



Não há férias que resistam a uma onda de calor - calma, dizem os meteorologistas, ainda é cedo para isso - principalmente quando se decidiu há muito não procurar o Sul. A água fria, revolta, o vento a bater o areal, belas praias que julgamos ainda manterem uma virgindade clandestina, horas suportáveis que terminam com algumas imperiais e petisco a acompanhar, uma esplanada sobre o mar. A alternativa é ficar em casa, e aqui o único consolo é uma ventoinha, mais ice tea e muita televisão. Filmes atrás de filmes, integral de Clint Eastwood nos canais TvCine - estranha época para descobrir as obras-primas perdidas dos primeiros tempos (The Outlaw Josey Wales, Honkytonk Man) e saber que o realizador não é apenas o último dos clássicos, essa frase para vender qualquer coisa que transcende a ideia que os publicistas querem passar. É o descendente mais fiel de John Ford, é certo, mas é sobretudo o depositário de uma tradição do cinema feito em Hollywood que privilegia a palavra e o trabalho dos actores, a história e as personagens que a transcendem. A câmara está ali, rigorosa, elegante, capturando e evidenciando esse material de base, a essência do cinema clássico.
Filmes e séries, dieta rigorosa de Top Gear (e The Ultimate Survivor como aperitivo), ao fim da tarde e à noite, tentando recuperar as temporadas perdidas de uma das melhores séries de humor da última década. O programa de Jeremy Clarkson (devidamente acompanhado por James May, Richard Hammond e o incomparável Stig) é um achado, umas das mais vertiginosas reviravoltas a que um conceito pode ser submetido: como fazer um programa sobre carros? Se olharmos para os exemplos nacionais, o deserto: test drive bocejantes, raparigas talentosas, mas não no trabalho que fazem, comparações de preços e outras peças convencionais e sensaboronas que me fazem lembrar o tempo todo que eu nem conduzir sei. Verdade absoluta de que me esqueço quando vejo Top Gear.
E pouca leitura, que o calor não deixa. Há cerca de quinze anos que não lia Vergílio Ferreira, se descontarmos uma tentativa que se ficou pelo início, há uns tempos. Um dos autores que li com maior espanto, por volta dos vinte. Aparição foi a revelação que se seguiu a Na Tua Face, o primeiro que li dele, o que eu mais gostei, que isto dos gostos pouco tem a ver com cânones e unanimidades críticas. Para Sempre a meio, e houve qualquer coisa que se perdeu pelo caminho. Certamente não foi Vergílio, fui eu. As belíssimas frases aparecem, aqui e ali, parágrafos exemplares, e aquele vaivém temporal, ao ritmo incerto da memória. Mas - os capítulos cheios de um rancor indefinido, o narrador que se deixa tomar pela voz do autor (imagino) e uma certa imprecisão no tom da narrativa. É a história de um amor, uma recolha do que se foi perdendo, o relato de um fim que se aproxima?
Julgo não ser o único a ler com atenção as primeiras frases, parágrafos, dos livros, e a admirá-los por si só, independentes do que vem a seguir. Frequentemente, obrigam-me a continuar a leitura, e raras são as vezes em que me arrependo - um escritor terá de investir tudo nestas primeiras palavras, convencer o leitor a acreditar no que escreve, ir com ele. Começa assim:

Para sempre. Aqui estou. É uma tarde de Verão, está quente. Tarde de Agosto. Olho-a em volta, na sufocação do calor, na posse final do meu destino. E uma comoção abrupta - sê calmo. Na aprendizagem serena do silêncio. Nada mais terás que aprender? Nada mais. Tu e a vida que em ti foi acontecendo.

Uma tarde de Verão, o calor de Agosto. É por aqui.

(Texto publicado inicialmente no Arrastão.)

Praias (8)

Cardinale e Zurlini.

10/08/10

Praias (7)

Anna Karina e Godard.

Praias (6)

Winslet, Carrey e Gondry.

2666 - a sequela

Havia um tijolo literário que me estava atravessado na garganta. Peguei nele diversas vezes, folheei, espreitei parágrafos, li páginas inteiras, frases, confirmei que a dupla de tradutores é de qualidade (li outros livros trabalhados por eles), deixei de parte, fui debicando os milhares de caracteres debitados em todo o tipo de publicações insuspeitas - e outras menos, como blogues - elogiando tal obra, tecendo loas que, aqui e ali, não desmereciam uma qualquer ode de Píndaro, voltei a insistir, uma e outra vez, até que desisti e decidi fazer uma espécie de introdução ao autor.
Aqui há uns meses, comecei a ler, prenhe de expectativa, O Terceiro Reich, do omnipresente Robert Bolaño, que é dele que falo. Aquilo a início pareceu-me estranho - um alemão amante de jogos de guerra perdido numa aldeia balear espanhola? Insisti, até porque recordo com prazer as horas passadas, na minha adolescência, debruçado sobre um tabuleiro onde soldados de plástico evoluiam em território inimigo conquistando regiões e países à velocidade ditada pelas pintinhas dos dados que eram atirados ao sabor de um ressalto provocado pela irregularidades do terreno - a mesa da sala. No livro, os dias vão passando entre o ritmo de um jogo ensaiado com uma personagem sinistra, pele queimada e mistérios por contar (oooooh) e a vida nocturna da localidade - que todos os que fizeram viagens de finalistas a Benidorm ou Ibiza saberão reconhecer, enlevados pela doce música da nostalgia. Comecei a pensar, a determinada altura, nos prós e contras do livro: jogos de tabuleiro - um pouco silly (se fosse xadrez, sempre poderíamos perdoar o lugar-comum) mas de algum modo reconfortante; praia - bom, mas, por amor de Zeus, não as da costa espanhola; personagens sinistras de pele queimada - humm... Dan Brown não escreveu uma coisa parecida? E por aí fora, por entre uma namorada que não chega a existir enquanto personagem, dois espanhóis que são o cliché de qualquer coisa, uma dona de hotel teutónica que desperta sonhos adormecidos no jogador e vagas - e óbvias - analogias à 2ª Guerra Mudial. Também há sonhos contados minuciosamente, que deve ser uma das coisas mais aborrecidas que nos podem acontecer, tanto na vida real como na literatura, e uma técnica narrativa comum a muitos estudantes de escrita criativa, a narrativa na primeira pessoa em forma de diário (isto não é um elogio). E o estilo, claro, o estilo, ausente, zero, sem uma metáfora marcante ou uma frase cantante, estilo seco, tão seco como um pau no deserto ou a pele do Queimado (juro que Bolaño usa, algures, esta imagem), e não falo do estilo de um Hemingway, lacónico e certeiro, ou de um qualquer escritor de policiais hard-boiled - nestes casos, a simplicidade da linguagem visa um objectivo que acaba por ser concretizado. Em Bolaño, há várias tentativas de embelezar o texto que falham. A secura, parece-me, é o resultado da rapidez de escrita. Mas ler duzentas e tal páginas sem um brilho que seja, chegando ao fim sem perceber muito bem o propósito daquela narrativa - a tal referência aos "horrores" da 2ª Guerra Mundial, que, mais para a frente, se torna explícita, é a única segunda leitura que se pode fazer do romance - será pedir demasiado. E o resto?
Sendo assim, admito a minha derrota - discordando de meio mundo, incluindo gente que muito prezo. Não avançarei pela noite escura de 2666. A perda irreparável, se quiserem, fica apenas comigo. Ninguém é perfeito.

(Publicado inicialmente no Arrastão).

08/08/10

Let's Go Surfing



Nunca se deve menosprezar o poder do assobio (esqueçamos os Scorpions) numa música pop, principalmente quando ela fala de praia, sol e miúdas. Os coros uma oitava acima e as harmonias vocais também costumam resultar - os Beach Boys deixaram uma lição valiosa. Junte-se a estes pressupostos a natureza passageira do Verão e já se pode ter uma boa canção. E se houver uma fixação pelos sons da new wave, versão anos 80, principalmente a facção Joy Division/New Order, sendo que aos primeiros pode-se ir buscar a bateria minimalista e a guitarra limitada de Bernard Sumner (os Cure também andam por aqui) e aos segundos a leveza vocal que estava ausente dos primeiros (a morte de Ian Curtis permitiu essa evolução), temos material mais do que suficiente para um feel good hit of the summer. Há uns anos foram os Peter, Bjorn and John (imediatamente seguidos de David Fonseca), agora há The Drums, com um álbum (Summertime! é o EP de 2009 que também inclui esta faixa) entre a nostalgia urbano-depressiva e a euforia do som de Brooklyn, versão Vampire Weekend e LCD Soundsystem, com passagem pela pop dos 80 (a minha década preferida), de Housemartins a Jesus and Mary Chain. E os Beach Boys sempre a espreitar. Combinação que primeiro se estranha, mas depois entranha-se, e bem. Durará o que durar esta estação. E já é muito.

02/08/10

Duas mulheres

Uma das principais preocupações do cinema português dos últimos quinze anos tem sido a reflexão sobre o estado de coisas em Portugal. Com o correr do tempo, seria natural que assim acontecesse; a revolução dos cravos parece ser um acontecimento que gera mais divisão do que união na sociedade, e chegou a altura de pensarmos na herança que ficou dos ideais de Abril e no país em que nos acabámos por transformar. João Botelho tem feito isso, João Canijo também, e, em certa medida, Fernando Lopes, na sua adaptação do romance de José Cardoso Pires, O Delfim, também o fez, continuando essa reflexão de forma mais evidente nas obras que se seguiram, Lá Fora e Os Sorrisos do Destino.
João Mário Grilo, que, além de realizador, tem sido um dos teóricos e críticos de cinema mais estimulantes em Portugal, também decidiu enveredar por esse caminho no seu mais recente filme, Duas Mulheres, tomo 1 de uma série que ele chama A Condição Humana. Curiosamente, lembrei-me da trilogia de Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza, constituída pelos romances Os Espaços em Branco, A Alma dos Ricos (Espelho Mágico, de Manoel de Oliveira, é uma adaptação) e Jóia de Família, brilhante retrato de uma certa burguesia que se perdeu e da nova que surgiu no seu lugar. E não anda muito longe do universo de Agustina, este filme. O argumento do escritor Rui Cardoso Martins e de Tereza Coelho procura um instantâneo da actualidade, dominada pelas notícias de uma anunciada crise financeira e das repercussões que esta terá num Portugal depauperado e em perpétua indefinição de identidade. A seriedade do assunto não permite que o filme se aproxime da ironia desencantada de Bessa-Luís, apesar de uma ou outra sequência - o aniversário do comandante, o primeiro jantar dos accionistas da empresa - lembrar o humor corrosivo (mas distante da sátira) do João Botelho de Tráfico.
Temos assim apresentado o tom geral do filme. O material de partida, apesar de não ser uma novidade no cinema português, seria sempre interessante. João Mário Grilo consegue transformar a história de um casal burguês, Joana (a sempre fabulosa Beatriz Batarda) e Paulo (um certeiro Virgílio Castelo), na imagem, fria e cínica, de um país. A companhia de Paulo passa por um momento de definição provocado pela crise financeira. O casamento de Paulo com Joana, bem composto e aquilo que a sociedade espera que um casamento daqueles seja (o tratamento por "você", a pose nos jantares sociais, o acompanhamento da "carreira" de Paulo por parte da boa esposa), é tão frágil como a economia mundial. Joana, uma psiquiatra que ascendeu socialmente e "casou bem", sente-se fora do aquário e não sabe o que é a felicidade - a determinada altura, confessa a um amigo (João Perry) que é... "feliz... pelo menos sou casada e tenho um filho". Até que conhece Mónica (Débora Monteiro), call-girl em plena crise existencial que leva Joana a trair o marido.
O medo, essa categoria maldita que José Gil associou à existência de um povo, é o que leva Mónica a encontrar Joana. O medo de Mónica, confessado, é tão real, contudo, como o medo de Joana, de voltar a uma existência marcada pela falta de ambição, a um regresso a essa "classe média baixa" de onde veio, pela qual ela mostra um profundo desprezo. Paulo tem medo do escândalo, da sociedade descobrir o pecado de Joana, e por isso prefere continuar a manter as aparências, num tempo em que a empresa precisa de "estabilidade" e "confiança do mercado". É este o Portugal de agora, e a câmara de João Mário Grilo filma tudo de forma precisa, cirúrgica. Não há sensacionalismo, nem caminhos fáceis, no cinema de João Mário Grilo. Poder-se-ia chamar cinema de tese, mas julgo que a classificação seria redutora. Existe, não duvidemos, uma ideia que o realizador tenta explicar ao longo do filme. Mas não há qualquer retórica no modo como o faz. Há, sim, uma qualidade técnica invulgar (estamos longe, muito longe, dos problemas com a captação de som e a dicção dos actores que o cinema português apresentava noutros tempos), servida por uma fotografia, montagem e direcção de actores impecáveis, e um modo certeiro de filmar um mundo em que as aparências dominam e em que os sentimentos e, sobretudo, a verdade, são conceitos estranhos, esquecidos. Excelente filme, um retrato amargo, sincero, sentido, de um país que se vai perdendo de si próprio.

20/07/10

No One Knows/Queens of the Stone Age



Muitas vezes, a música pop é feita de transições na vida de uma banda que incluem saída e entrada de músicos, acasos que redefinem o som e muitas vezes a própria história da música.
Em 2002, os Queens of the Stone Age já tinham dois bons álbuns publicados, Rated R e o primeiro, homónimo. Os Foo Fighters eram uma das grandes bandas rock de época. Certamente que o êxito não seria suficiente para David Grohl, vocalista e guitarrista do projecto que sempre foi mais dele do que dos outros músicos que foram aparecendo nos álbuns e nos concertos, a ponto de no primeiro álbum ter tocado todos os instrumentos. Por um destes acasos, Grohl interessou-se pelos QOTSA e juntou-se a Josh Homme (que já nos anos 90 tinha estado numa banda marcante, os Kyuss, e a Mark Lannegan, antigo membro de outro projecto dos anos 90 que definiu o som da época, os Screaming Trees. O resultado desta cadeia de acasos foi um dos mais poderosos álbuns rock da história, Songs for the Deaf.
Aos riffs ácidos da guitarra de Homme juntou-se o baixo speedado de Nick Oliveri (membro fundador da banda) e a guitarra melódica de Lannegan. Já seria muito bom, este line up, mas o ingrediente que elevou o álbum a níveis estratoféricos foi a bateria de Grohl. Há quem fale de John Bonham como eventual competidor de Grohl. Eu acrescentaria também Keith Moon e Reni (Stone Roses) e não deixaria de gostar bastante do minimalismo de Stephen Morris (nos Joy Division). Mas sem dúvida (e talvez por ter crescido a ouvir Grohl nos Nirvana) que o duvidoso frontman de uma banda que nada de novo trouxe à música rock (os Foo Fighters) está neste Olimpo por mérito próprio, e muito à conta do seu trabalho neste magnífico álbum dos Queens of the Stone Age. Os riffs são certeiros e deslumbrantes e os solos são estonteantes - e todos os outros instrumentos vão atrás do trabalho do baterista. É claro que as melodias vocais de Homme e Lannegan, contrastantes com o som cru das guitarras, procuram, sobretudo nos dois singles mais conhecidos (No One Knows e Go With the Flow), a perfeição pop e a consequente consagração das tabelas. Mas o segredo do álbum (que não voltou a ser repetido nos que se seguiram) é a secção rítmica liderada pelo génio de Grohl. Passávamos bem sem um Grohl vocalista e guitarrista, mas se são os Foo Fighters que temos de suportar para ouvirmos estas aventuras de vez em quando, menos mal.

(Texto publicado inicialmente no Arrastão).

18/07/10

A cultura dos outros

Sabemos como funciona: uma mentira, de tanto ser matraqueada, acaba por se tornar verdade, o público passa a acreditar nela. De cada vez que se fala em Cultura - essa entidade difusa - lá vem o regimento do costume protestar contra a subsidiodependência e chamar de parasita para baixo aos "artistas". Sabemos quem são, mas, dependendo do partido que está no poder, acabam por aparecer novos indignados com a "pouca vergonha" que é a existência de artistas "independentes", que no fundo são dependentes do Estado e que, por isso, não conseguem criar de forma verdadeiramente independente - bela tautologia. A frase (apócrifa?) de Goebbels - "quando me falam em Cultura saco logo da arma" - é um brinquedo nas mãos destes privilegiados que, aposto (?), nunca terão beneficiado desta política despesista que subsidia a criação. Se lhes perguntarem, eles negarão que alguma vez tenham ido ao teatro, nunca entraram numa sala de cinema para ver um filme português (o sociólogo Gonçalves orgulhava-se, numa crónica, de associar sempre o cinema português a uma sessão de tortura), não visitam museus nem fundações e não compram livros editados em Portugal. Se forem coerentes, também não gostam de futebol nem põem os pés nos estádios construídos para o Euro 2004 - afinal a bola é cultura (do povo) e não há memória de subsídio mais oneroso para o Estado do que a organização desse campeonato. Pensando bem, esta gente que sente repulsa da subsidiodependência deve viver num planeta qualquer e apenas sabe do que se passa em Portugal pelos jornais, reagindo pavloveanamente - e, lá está, de arma em riste - de cada vez que o assunto "Cultura" vem à baila.
Talvez não adiante muito ler textos como o de Manoel de Oliveira, no outro dia no Público, no qual ele explicava como se processa a produção de cinema em Portugal. O final da crónica é essencial para percebermos as dificuldades de quem trabalha na indústria cinematográfica em Portugal. "Fazer filmes até morrer". É isso que Manoel de Oliveira deseja, mas não se pense que o quer fazer por amor à Arte. Ele, o nosso maior embaixador nesta área, apenas o faz porque a isso é obrigado - é assim a precariedade absoluta de quem precisa de novo financiamento para fazer o filme seguinte. E assim sucessivamente. Eu sei que quem vive nesse planeta bem pode dispensar o próximo filme de Manoel de Oliveira, ou o próximo de Pedro Costa, ou de João Canijo. O tal argumento repetido até à náusea de que apenas quem quer ver deve financiar esta Arte. Se não se auto-financia, azar, que se acabe com ela. O liberalismo económico é assim que deve funcionar, e enquanto não se estender este princípio a outras áreas da economia, como a Saúde ou a Educação, estes extraterrestres não estarão satisfeitos.
Claro que nenhum país se aproxima desta utopia liberal. Subsídios estatais à produção é prática comum no Ocidente, mesmo nos E.U.A., onde, pela dimensão, existem condições para haver uma indústria cinematográfica, um circuito de museus privados (mas, hélas, sempre com o apoio de dinheiros públicos), e uma oferta teatral que vai desde a Broadway até à off-off Broadway, os pequenos teatros independentes que, imagine-se, também obtêm fundos estatais para continuarem a sua actividade. Na Grã-Bretanha existe uma indústria cinematográfica mas, azar dos azares, também há apoio à produção de art films, através do British Film Institut; o Teatro tem também bastantes apoios do Estado; e os museus, esses que não foram visitados pelos nossos intelectuais de direita que abominam a subsidiodependência, são alimentados por mecenas, entre os quais, vá lá saber-se porquê, está o Estado, quase sempre o parceiro que tem mais peso no orçamento destas instituições. E não é tão bom não pagar entrada na Tate, no British Museum, na National Galery?
Podem vir dizer que estes são países de tradição liberal e... ah, mas não é nos países de tradição liberal que existe menos subsidiodependência? Não é aqui que o Estado não se mete em assuntos de criação e deixa os artistas serem verdadeiramente "independentes"? Pois é, uma chatice quando os factos contradizem os delírios liberais destes intelectuais. Curiosamente, é neste países liberais que os cidadãos menos se apoquentam com os subsídios à criação. A intervenção estatal nas áreas criativas apenas é um problema em países de tradição francófona ou, pura e simplesmente, de tradição tacanha e anti-intelectual, como é o nosso caso.
A mentira repetida - a de que a Cultura é um peso para um país e não deve ser financiada pelo Estado - acaba por ganhar adeptos em tempos de crise, confirmando uma ideia antiga: as elites são as principais culpadas do atraso endémico do país. O que é mais perverso nesta situação é saber que quem produz este tipo de opinião é quem tem - e terá - mais acesso à Cultura. Os outros, as populações fora dos grandes centros urbanos que vão tendo acesso ocasional à produção cultural - companhias de teatro regionais, cineclubes, museus regionais - serão os primeiros a sofrer se existirem verdadeiros cortes nesta área. Mas não se espere qualquer comoção vinda destes atiradores precoces - uma opinião politicamente incorrecta (a panaceia da direitinha liberal e da pseudo-esquerda iletrada que vive na sombra deste Governo) dispensa sempre a verdade e o mínimo de decência.

(Texto publicado inicialmente no Arrastão).

15/07/10

Duas mulheres

She Bangs the Drums/The Stone Roses



Os Stone Roses levaram anos a criar a obra-prima; e demoraram alguns mais a produzir uns dos segundos álbuns mais aguardados de sempre - ou assim me parecia, julgando pela histeria da imprensa inglesa que eu na altura lia, as manchetes do New Musical Express e do Melody Maker em pleno período de euforia britpop. O segundo álbum, Second Coming, deu cabo da reputação da banda e esta acabaria por se separar pouco tempo depois deste ser publicado (1994), em 1996, em consequência da saída do guitarrista John Squire e do baterista Reni. Pelo meio, Slash ofereceu-se para substituir Squire mas Ian Brown recusou - e continuo a imaginar o que poderia ser o som Stone Roses cortado com a guitarra hard-rock dos ex-guitarrista dos Guns'n'Roses.
De um som inspirado nos Who e nos Jam ao groove do primeiro álbum, homónimo, - o resultado desses anos passados. O sussurro de Brown para disfarçar a fragilidade da voz, uma secção rítmica do outro mundo (Reni e Mani), a guitarra entre o blues e o swing de John Squire. E um talento invulgar da banda para tornar cada música num épico, com mudanças de ritmo, crescendos emocionais, variações melódicas e apontamentos psicadélicos de guitarra resgatados à década de 60.
She Bangs the Drums é a perfeita música pop, uma de muitas naquele que é um dos melhores primeiros álbuns de sempre. Como dura apenas três minutos e quarenta e três segundos, só nos resta ouvir em repeat. E é sempre perfeita.

Álbum: The Stone Roses, Silvertone, 1989, produzido por John Leckie.

(Publicado inicialmente no Arrastão)