24/09/13

Meio tempo

De ano para ano, o verão cada vez mais entra pelo outono dentro. O calor prolonga-se, os dias quentes repetem-se, monótonos, e vai aumentando a vontade de chuva, de voltarmos a sentir a casa como refúgio das tempestades que vêm. O sentido das coisas depende da melancolia que o fim do verão faz nascer na alma. Sem essa ideia de fim, de passagem entre duas matérias, enredamo-nos na indecisão da natureza, e somos levados a crer que por uma vez os ciclos podem suspender-se e a necessária previsibilidade do tempo seja apenas uma ilusão. Neste meio termo, a luz nas praias torna-se mortiça, perde a nitidez e o brilho claro dos longos dias de verão. O calor é o mesmo, mas o corpo sente a diferença, a inclinação mais acentuada do sol sobre a pele. Quando por fim vier a primeira chuva, o alívio. Com ela, o mosto nos lagares crescendo, as laranjas nos pomares ganhando cor, os campos vazios esperando as sementeiras. Precisamos deste intervalo de tempo, entre o excesso e o desejo. A meio caminho de um ano. 

18/09/13

Os amantes

Uma notícia de jornal diz que
eles, como os amantes de Verona,
eram de famílias desavindas e que por isso
tiveram de fugir para se casar quando
ainda andavam na escola.

Como não viveram sob o signo
da poesia, não chegaram a morrer de amor,
do veneno ou da força do punhal no peito.
Casaram e viveram felizes para sempre.
Isto é: foram encontrados setenta e cinco anos depois
entregues por fim
ao inevitável desfecho, mortos separados por um dia,
vivos amando-se ainda.

17/09/13

Immanuel Kant, o incendiário

Despertou-me inicialmente a atenção quando vi a notícia no Sol. Como me pareceu que haveria um problema de redacção e/ou tradução, pesquisei no Google e fui ter à notícia do Independent. Alguém que não estivesse atento poderia pensar que esta é uma daquelas notícias inventadas, da Imprensa Falsa ou do Inimigo Público. Mas é verdade, o que só prova o cliché de que a realidade demasiadas vezes ultrapassa a ficção.
Um homem é baleado no seguimento de uma discussão filosófica. Sobre Kant. Baleado várias vezes pelo seu opositor. Quão extraordinário é isto? Kant, o homem que fazia da temperança e da sensatez as suas virtudes cardeais, a gerar tanta paixão. Não tendo sido divulgada a ideia kantiana sobre a qual os dois homens russos discutiram, é contudo revelado um pormenor que me parece interessante: a discussão começou enquanto esperavam por uma cerveja. Sabemos como o álcool altera o estado de espírito, espoleta discussões e gera violência. Mas isto é, digamos, excessivo. Encetar uma discussão filosófica com um estranho que redunda em confronto físico e em tiros disparados à queima-roupa entra no domínio do surreal. Não há númeno que descreva esta sucessão de improbabilidades estatísticas. Mesmo acreditando que na Rússia é vulgar a discussão em público de temas filosóficos - tal como é dito na notícia do Sol. Se assim for, o país de Tolstoi e Putin é o legítimo herdeiro da Grécia Antiga, mas com uma reviravolta: saímos da academia, das escolas fundadas por filósofos, e saltamos para tascos mal frequentados. Da Ágora para a taberna - três mil anos de tradição filosófica no Ocidente.
Seja como for, e prestada a devida homenagem à nação que recuperou o fervor da discussão filosófica pública, resta uma questão: que conceito estaria em discussão? A diferença entre belo e sublime? As ideias apriorísticas? Dúvidas, dúvidas. Certamente que não seria a ideia de paz perpétua. Talvez o imperativo categórico. Quem sabe se, levado por uma fervorosa defesa deste imperativo, o homem que descarregou um revólver (com balas de borracha) no seu adversário não seria o último reduto desse imperativo? As contingências da vida material - os limites da moral, a prisão - não se sobrepuseram à obrigação moral, ao dever, que terá sentido em defender o seu ponto de vista. Sem termos a certeza sobre qual a ideia discutida, podemos facilmente acreditar que, naquele momento, a obrigação moral sobrepôs-se ao resto. Contra este facto, nada poderemos fazer. Uma coisa é certa: como alguém comentou no Facebook: "todas as discussões filosóficas deveriam acabar assim". Tanto fervor e dedicação certamente contribuiriam para o renascimento da filosofia. Bem precisamos.  

Notas para uma crise (7)

O rapaz que agora toma conta do país afirmou em tempos - numa entrevista dada quando ainda era apenas um simples candidato a líder do maior partido da oposição - que cedo se dedicara ao ensaio, tendo lido Jean-Paul Sartre na adolescência, nomeadamente um livro intitulado "Fenomenologia do ser". Claro que vários ilustres membros da nossa intelligentsia lhe caíram em cima, fosse por despeito fosse porque simplesmente... esse livro não existe. Não existe no sentido material e concreto da coisa - Sartre nunca tinha escrito obra, ou ensaio ou nota de diário que levasse esse nome. Os jornalistas que depois pegaram na peça tentaram compôr a coisa à jovem esperança da política portuguesa, sugerindo que ele se poderia estar a referir a O Ser e o Nada e ao subtítulo deste: "ensaios de ontologia fenomenológica". Todavia, o episódio não se livrou de ficar ao mesmo nível dos concertos para violino de Chopin apreciados por um antigo presidente de um clube de futebol. Mas a verdade é que esse é o menor dos seus pecados - a ignorância pusilânime de um imbecil; tudo o que tem feito desde que se tornou primeiro-ministro é uma nódoa que nem o mais bem intencionado biógrafo conseguirá apagar. 
Os políticos medíocres e os escritores com aspirações ao respeito do meio caem muito nestas armadilhas montadas pelos jornalistas - esses sacanas sem lei. Há uma rapariga, Margarida Rebelo Pinto, que é especialmente dotada a citar autores e livros e frases. A mim, sinceramente, desconserta-me, porque nem tem de todo mau gosto. Ou então é esperta o suficiente para saber quais os nomes de que deve falar, quais os grandes escritores que fica bem dizer numa entrevista. Certo que Rebelo Pinto sofre a bom sofrer. A cada entrevista que dá, sentimos um rancor por escrever a tal literatura light. Colada com cuspo na testa, a marca nunca mais sairá. Não é que não seja justo - se a literatura light é o lúmpen da literatura, que outro selo de qualidade lhe deveria estar apenso? Duas coisas são certas: mesmo que um dia Rebelo Pinto escreva os "Cem Anos de Solidão" do seu contentamento, não será promovida a esse tal meio que a execra; e nunca Rebelo Pinto conseguirá escrever os "Cem Anos de Solidão" do seu contentamento. 
De cada vez que, por uma razão ou outra, leio essa história do político, lembro-me do Jean-Sol Partre, o filósofo que Boris Vian criou para A Espuma dos Dias. Vivíamos tempos de risco e de polémica. Vian não se importou de parodiar aquele que seria, já à altura, um dos mais importantes intelectuais e escritores franceses. Talvez não fosse ainda a instituição que depois se tornaria, mas seria digno do respeito de um recém-chegado como Boris Vian, sobretudo porque acabaria por publicar excertos do livro de Vian na revista que dirigia com Simone de Beauvoir, Temps Modernes.
Eram outros tempos. Estes, infelizmente, são de chumbo. Quando a apatia toma conta de tudo, até os intelectuais desaparecem. Tirando um ou outro fogacho de figuras isoladas, nada se passa. No outro dia, corria pelo Facebook um texto de Natália Correia, escrito em 1992, sobre o futuro do país. Quase tudo o que está escrito naquele texto se concretizou. E em profunda abulia vamos sofrendo este apagamento da cidadania. No mesmo dia em que li esse texto, um ministro da educação vinha para a televisão mentir sem qualquer pudor. Com a educação pública a ser destruída, por onde andam os intelectuais - escritores, músicos, artistas - que dela beneficiaram? Não escrevem manifestos, não promovem abaixo-assinados? Não reclamam, não dizem nada, calam-se? Temos políticos a governar contra os interesses do povo, e quase ninguém se levanta. Os intelectuais, silenciosos - com uma ou outra honrosa excepção. Enquanto alguém como o rapaz que em tempos leu um livro que nunca existiu - escrito por Sartre - vai brincando com o que não domina, desistimos. 

16/09/13

Uma história simples

Uma História Simples revela-se, com o tempo, o meu filme preferido de David Lynch. Será aquele em que o realizador decidiu iludir a mão que guia a sua obra e deixar a câmara apanhar um pouco da vida americana, tal como ela é.
Há marcas, sinais de reconhecimento, nesta história de um homem que decide fazer 510 quilómetros através de dois estados do Midwest americano - a paisagem de americana - para visitar o irmão desavindo que está às portas da morte, montado num cortador de relva. O modo como Lynch vai apresentando as figuras que se vão atravessando no caminho de Alvin Straight condensa o mesmo espanto sobre as peculiaridades do Homem comum, do americano vivendo nas pequenas cidades do interior, que existe em Twin Peaks ou Veludo Azul. No entanto, Lynch suspende por momentos o seu olhar voyeurista e sente verdadeira empatia por aquela gente simples. É como se durante o tempo que dura o filme Lunch fizesse aquela viagem com Alvin, ao lado dele e não em panorâmica sobre o tractor viajando a 10 à hora. A estranheza lynchiana aparece a espaços, nos curtíssimos planos entre cenas mostrando chaminés de fábricas abandonadas ou nas intrusões da música de Badalamenti, quando a normalidade do dia a dia do americano médio se torna subitamente estranha. Sobretudo quando Alvin acampa ao largo de um cemitério, a morte em fundo de conversa com um padre, e naquele momento os três tempos coincidem: o passado de Alvin - a matéria de que é feito o seu presente -, o presente contínuo, real a partir do momento em que há um objectivo que o conduz, uma imagem de futuro; e o futuro em si, em fundo e personificado pelo padre. 
Alvin é um fantasma atravessando o interior da América. Um fantasma vindo de um passado remoto e comum a tantos outros, contando histórias de guerra que mudam para sempre um homem. Mas é também um fantasma de um género, o road movie. Em câmara lenta, a caminho de uma redenção final, responde quando lhe perguntam o que fez durante a vida: "andei por todo o lado". Pouco é dito, porque o passado apenas interessa ao presente na medida em que possa ser o cimento de uma identidade. Poderia ser um motoqueiro de Easy Rider, ou um dos noivos sangrentos de Badlands - e que Sissy Spacek apareça também no filme de Lynch não pode ser coincidência, assim como não o são os planos filmados à hora mágica de Malick. 
A um homem, depois de certa idade, tudo pode ser perdoado. Filmar a vida de Alvin Straight com uma tal doçura e pudor é de mestre. A bizarria parece não entrar neste filme. O silêncio entrecortado pelo motor de um corta-relvas. Haverá algo mais bizarro do que a própria realidade?

07/09/13

Ozu

Dois filmes de Ozu a estrear nas salas de cinema. Restaurados digitalmente. Vão passar discretos, por aí, no meio do ruído cinematográfico, sem ninguém dar por eles. De certa forma, ainda bem.

04/09/13

Notas para uma crise (6)

Esta notícia de um edifício construído em Londres que, devido à sua forma côncava, reflecte o sol, provocando danos em outros edifícios e carros próximos, leva-me a acreditar que há vários graus de falhanço a que todos podemos estar sujeitos. Há os grandes, gigantescos falhanços, tão grandes que são perdoados e compreendidos por todos - nesta categoria incluiremos sem dúvida os falhanços dos políticos e dos economistas. Acrescente-se que, de qualquer modo, este fracasso não é entendido como tal por quem nele se enreda. A qualidade de um político mede-se quase sempre em função do limite a que pode ser levado o seu estado de negação. Acredito que um político que fracasse tanto e tão completamente que se torne humilhante aos olhos de qualquer ser humano que saiba o que é vergonha alheia tenha poderes especiais; isto é, criou uma carapaça tão forte que nenhuma crítica lhe belisca o ego. Não falha não porque não falhe - mais do que os outros - mas porque nunca chega a assimilar a magnitude do seu falhanço. É como a mentira. Um político não mente porque na realidade a partir de certo ponto sente a verdade como mentira e a mentira como verdade. Se for demasiado sincero sabe que, quando chegar a altura, falhará na sua promessa, por isso mente de antemão e mente durante e mente depois de ter contradito a promessa. Ora, alguém que nunca mente - porque, do mesmo modo que um psicopata não sente empatia, é falho na compreensão da mentira que ensaia - também nunca falha. As biografias dos políticos são monumentos à elipse e ao esquecimento. Tudo o que é grandioso cabe lá, e os falhanços só lá entram na medida em que consigam mostrar um lado mais humano do político. Muitas vezes, nem falhanços são; são circunstâncias enquadradas por momentos, condicionados por conjecturas e especulações provisórias. Acidentes de percurso que nunca poderiam ter acontecido de outra maneira, e aos quais a vontade do político é imune.
Mas adiante. O arquitecto que projectou o edifício certamente que não pensaria, enquanto desenhava no seu atelier, que tal poderia acontecer. Londres até é uma cidade com pouco sol, e por aí fora. Há quem diga que para cada projecto de arquitecto é preciso um engenheiro para manter a estrutura em pé. Quem costuma afirmar tal são, como seria de esperar, engenheiros. Que quase sempre são tão falhos de imaginação e criatividade que apenas poderiam ter-se tornado engenheiros. Mas seja como for, neste caso o falhanço é tão grande como o daquela ponte que há uns anos foi construída numa cidade americana e que, à primeira tempestade que a atingiu, foi arrancada das fundações pelo vento. 
O que sentirá o arquitecto? Certamente culpa. Sobretudo vergonha. A vergonha que raramente assola o político. Vergonha por ver o seu falhanço exposto à inclemência do mundo. Nenhum ego poderá resistir a tal erro. Os mais fracos dirão: apenas falha quem chega a tentar. Não deixa de ser verdade, mas para tal falhanço não foi preciso risco; apenas uma enorme insensatez. Seja quem for, não vou ter pena de quem falhou por tanto. Deve ser uma arte respeitável, saber expôr-se a exigências humanas, à cruel mão do destino. Preferiria mil vezes que existissem mais falhanços deste e menos dos políticos. Por cada edifício mal estruturado, há um crime involuntário a ser cometido por causa do falhanço de um político. Não perdoar os primeiros e aceitar os segundos torna isto tudo muito mais difícil.